segunda-feira, 31 de maio de 2010

Vila-Matas, o jogo

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 13 de Abril de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



(fotografia: Daniel Mordzinsky)

Para os devidos efeitos declaro que fumo, bebo e sou viciado em Enrique Vilas-Matas, o escritor catalão. Sinto tremuras assim que tomo conhecimento da publicação de alguma coisa que ele tenha escrito. Tento resistir, mas acabo sempre por ir furtivamente até alguma livraria a fim de adquirir a minha dose. Perguntam-me se “é para oferta” e eu tenho vontade de responder o mais sinceramente que posso:

- Não senhor, é para consumir já.

Ler Enrique Vilas-Matas, os seus contos, romances, crónicas e divagações diarísticas, equivale a entrar numa espécie de jogo literário, divertido e culto, no qual a ficção e a realidade se fundem e confundem (“para alcançar a verdade”, diz ele). Enrique é um escritor notável e é também um leitor absolutamente genial e pantagruélico. Lê-se e tem-se vontade de partir imediatamente para a exploração de outros livros e para a fascinante descoberta dos universos que neles se guardam. Fica-se viciado naquele modo peculiar de associar ideias e vai-se dormir como quando se esteve muito tempo a jogar tetris e as peças do jogo continuam a cair e a necessitar que as relacionemos.

Em Diário Volúvel, o mais recente livro do catalão publicado em Portugal, há, logo na segunda página, mais uma pista para o delirante jogo metaliterário que é ler Vila-Matas. O escritor conta, numa nota de 2005, o seu desejo de abandonar a escrita e de transformar esse abandono numa obra de arte. Para tal, propõe-se contratar um escritor disposto a narrar essa renúncia ou, em alternativa, fazê-lo ele mesmo: “invento-me um escritor contratado que segue os meus passos depois do abandono e escreve por mim um diário, onde simula piedosamente que não deixei a escrita”.

Falsa obsessão ou plano sincero, o desaparecimento e o abandono da escrita (“o meu empenho em não ser ninguém”) são temas frequentes na obra de Vila-Matas. Encontrámo-los já em História abreviada da literatura portátil e em Bartleby e companhia, por exemplo, e até, de certo modo, em Viagem Vertical. Mas é sobretudo em Doutor Pasavento, o romance de 2006, que Enrique concretiza o projecto enunciado no diário. Pasavento é um discípulo do austríaco Robert Walser e empenha-se na tarefa de desaparecer do mundo, mas não se chega a saber se Vila-Matas é o escritor, o narrador ou o personagem dessa tão peculiar ficção.

Enrique gosta, aliás, de alimentar esta ambiguidade. Quando, em 2007, se apresentou nas Correntes d’Escritas da Póvoa de Varzim, declarou: “Sou o doutor Pasavento”. Em 2008, entrou numa sala de conferência em Matosinhos com óculos de sol e a gola do sobretudo levantada, como se encarnasse também algum dos seus estranhos personagens. Eu estava com ele nos bastidores e vi como sorriu antes de passar a porta, divertido com a excentricidade que ia praticar. Depois compôs um ar sério e entrou na sala com esse mesmo sobretudo “de bom corte, britânico”, que revejo agora em Diário Volúvel, involuntariamente roubado por Claudio Magris no bar de um hotel de Madrid, em Março de 2006.