Parecendo que não, aprecio bastante acordar às cinco da manhã para tomar notas mentais para os textos que vou escrever durante o dia. Esta frase, por exemplo, ocorreu-me assim, inteira e cristalina, por volta das 6h10. Houve outras, claro, mas, como depois adormeci um bocadinho (para poder desfrutar do horror de acordar com o José Sócrates a citar uns versos que, no contexto, me soaram bastante fascistas), não estou absolutamente certo de quase nada, nem sequer de ter estado acordado.
Absolutamente indiferente a toda a razoabilidade e mesmo ao facto de não fazer já muito sentido discutir este assunto, decidi, ainda assim, que escreveria esta manhã sobre o casamento homossexual entre pessoas do mesmo sexo, o qual deve ser distinguido, por amor à exactidão, do casamento heterossexual entre pessoas do mesmo sexo (quando, por exemplo, ela é muito homem e manda lá em casa, ou vice versa) e do casamento homossexual entre pessoas de sexos diferentes (presumo que percebam onde quero chegar).
No ponto em que estamos, com a lei assinada pelo presidente e tudo, a pouca discussão que resta está circunscrita basicamente a dois níveis, a semântica e os valores, ambos particularmente caros à Igreja e às pessoas de direita.
No que respeita aos valores e, nomeadamente, ao confronto entre o valor da liberdade individual e os chamados valores da família, considero bastante aborrecido ter que debater valores com pessoas ou grupos de cidadãos de algum modo relacionáveis com perseguições religiosas e étnicas, a escravatura e a queima de outros seres humanos em praça pública. Nunca se sabe que género de sevícias podem ter reservado para o século XXI.
Por outro lado, parece-me que a instituição familiar é claramente sobrevalorizada pelas pessoas religiosas e/ou de direita, na medida em que conheço vários casos de agregados familiares cujas pessoas conseguem ser muito desagradáveis umas com as outras. Em algumas famílias (heterossexuais e tudo) ignora-se também teimosamente aquela coisa do “ide e multiplicai-vos”, o que, para além de ser um pouco chato, as transforma em núcleos sociais praticamente gay.
Depois há a questão da linguagem, uma vez que as pessoas religiosas e/ou de direita não apreciam que se chame casamento à união contratual entre pessoas homossexuais, devendo o termo ser reservado à união contratual entre pessoas heterossexuais de sexos diferentes. Estão aquelas pessoas no seu direito legítimo, uma vez que cada qual pode ter as opiniões que quiser desde que não queira impô-las aos demais (coisa de que tendem a esquecer-se tais indivíduos crentes e/ou de direita).
Dito isto, considero que, se tais pessoas querem palavras de uso exclusivo, devem inventá-las, uma vez que “casamento” caiu no domínio público, dada a sua incontestável utilidade para a conversação comum. É que, parecendo que não, as pessoas quando vão assinar o contrato que as une têm a necessidade de descrever o acto que estão à beira de perpetrar e não dá jeito nenhum, por exemplo, comunicar aos colegas de trabalho que se vai participar na celebração da união civil entre duas pessoas do mesmo sexo.