(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 6 de Abril de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)
Depois de ter sido filmada e fotografada, de ter servido de modelo a pelo menos três esculturas de Marc Quinn (uma das quais esteve exposta no British Museum) e de ter sido pintada por Lucian Freud (entre outros), Kate Moss, a manequim, vai agora aparecer num pequeno papel d’A Tempestade de Shakespeare, no londrino teatro Old Vic, onde será dirigida por Sam Mendes. Acontece de vez em quando: uma mulher sem nenhuma beleza especial transforma-se, pela arte, num ícone do seu tempo. A Kate Moss da década de 1920, por exemplo, chamava-se Alice Ernestine Prin e ficou famosa como Kiki de Montparnasse (tão famosa que a alcunha se transformou no nome de uma cadeia internacional de produtos eróticos de luxo).
Kiki começou a posar nua para os artistas parisienses com catorze anos de idade e é considerada pelos seus biógrafos como a primeira mulher realmente livre – tão livre que, com 16 anos, já era viciada em cocaína. Foi amante de Man Ray e, talvez por isso, é ela a mulher fotografada em algumas das suas obras mais famosas, como Violon d’Ingrés e Noir et Blanche. Foi também pintora, cantora, actriz e bailarina, e, em 1929, com 28 anos, já tinha vivido o suficiente para publicar um livro de memórias, o qual contou com uma introdução escrita por Ernest Hemingway (e que foi proibido nos Estados Unidos).
Kiki serviu de modelo a dezenas de pintores, escultores e fotógrafos da fervilhante cena parisiense dos anos 1920 e há-de ser, por isso, um dos rostos mais abundantemente reproduzidos pela arte. Está em obras de, entre muitos outros, Francis Picabia, Jean Cocteau, Arno Breker, Alexander Calder, Pablo Gargallo, Fernand Léger e Brassaï, sendo, por isso, relativamente fácil encontrar uma imagem de Kiki quando se entra num grande museu.
Kiki não era uma mulher bonita. Tinha um nariz carismático (Alexander Calder inspirou-se nele para uma escultura de 1930), olhos escuros, uma boca pequena e as sobrancelhas muito depiladas, transformadas numa linha negra e excessivamente teatral. Usava o cabelo curto, às vezes com um penteado semelhante ao que celebrizou a actriz Beatriz Costa. Em 1920, fotografada por Julian Mandel, a “rainha de Montparnasse” ainda parecia uma ninfeta jovem e elegante, mas, aos 22 anos, as costas de Kiki no Violon d’Ingrés revelam o corpo de uma mulher precocemente madura. No Nu assis, de Kisling, e sobretudo no quadro Kiki Nude, de Per Krohg (1928), a beldade aparece já dotada de uma anca rotunda e flácida, enorme, semelhando uma matriarca impudica.
Se não é difícil imaginar o frémito que percorreria o olhar de pintores e escultores quando tinham Kiki nua diante deles, e que impulso os levava a venerar essa mulher de hábitos demasiado liberais para a época, a sua imagem, gorduchinha e algo macilenta, não poderia estar mais distante dos ideais de beleza actuais, construídos à custa de muitas dietas e de meses passados nos health clubs que surgem a cada esquina. Mas, daqui a noventa anos, é igualmente provável que ninguém perceba a graça que hoje encontramos numa moça tão escanzelada como Kate Moss.