segunda-feira, 15 de março de 2010

Labirinto

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 9 de Fevereiro de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)




Cruzei-me ontem, numa livraria, com uma edição do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, com apenas 115 páginas. Tarde demais: ando há meses a marrar no grosso volume que adquiri num arroubo de voluntarismo, consumindo as quase 500 páginas em doses homeopáticas, quando podia ter-me limitado a ler a publicação na qual se resume “o melhor do Livro do Desassossego”.

Extenuado pela insanidade que é ler o melhor, o pior e o assim-assim da obra de Soares/Pessoa, fui ver a exposição Resistência, patente no Centro Português de Fotografia e dedicada a todos os que, entre 31 de Janeiro de 1891 e 25 de Abril de 1974, se empenharam em fazer alguma coisa para que Portugal fosse um país livre. Lá estavam Abel Salazar e o bispo D. António Ferreira Gomes, Salgueiro Maia, os grevistas da CUF, os loucos republicanos de 1891 ou os regicidas de 1908, ainda que, enquanto passeava entre as estilosas estantes de contraplacado que servem de suporte às imagens, me tenha vindo à memória, isso sim, uma notícia recente sobre uma exposição em Buenos Aires, no Centro Cultural Borges.

El vértigo de las reservas, do fotógrafo suíço Alan Humerose, mergulha no mundo inexplorado dos depósitos dos cinco maiores museus de Genebra, mostrando as obras que os visitantes não costumam ver, guardadas em subterrâneos. Para tal, Humerose teve que percorrer quilómetros de armários, investigando-os, perdendo-se para encontrar um nexo da sua viagem. À revista Ñ, explicou que, ao princípio, não sabia por onde começar, mas que o mergulho nos armazéns dos museus acabou por se transformar em algo semelhante à vertiginosa exploração de um labirinto.

Jorge Luís Borges, o escritor argentino que o espaço da exposição homenageia, também gostava de labirintos e chegou a imaginar, entre outras coisas particularmente instigantes, um dédalo literário, a Biblioteca de Babel, espaço infinito que abrigaria uma infinidade de livros e que, por isso, conteria todas as possibilidades da realidade. Enquanto metáfora do mundo à espera de decifração, o labirinto de Borges parece convidar a mergulhar também no infinito labirinto que são os depósitos e armazéns de todos os museus do mundo, nas realidades ocultas e na arte secreta que lá se esconde.

Pode-se, evidentemente, ficar com uma ideia do que é o Livro do Desassossego em 115 páginas, mas só se conhece realmente o Livro do Desassossego imergindo profundamente no enleio mental de Bernardo Soares. Talvez por isso, enquanto deambulava pela espécie de labirinto formado pelo cenário da exposição Resistência, entre fotografias de vilões e heróis, rostos famélicos e jovens da Mocidade Portuguesa executando a saudação fascista, percebi que, por trás de cada uma daquelas histórias, daqueles factos, haverá algures, num imaginário depósito, uma imensa galeria de grandes homens esquecidos e anónimos; e que, de uma forma ou de outra, estamos sempre condenados a conhecer apenas uma parte da realidade, superficial e resumida – como uma biblioteca infinita condensada em 115 páginas.