Num outro blogue, numa outra vida, escrevi, a 28 de Outubro de 2005, um post assim:
A rapariga de uma perna só que pede esmolas no semáforo tem agora uma cadeira de rodas. Já não se arrasta em cima das muletas, portanto. Ganhou velocidade de deslocação, modernizou-se, chega mais depressa aos automóveis e, por isso, pode abordar mais condutores no escasso tempo que dura o sinal vermelho. A cadeira de rodas da rapariga de uma perna só é velha e algo desconjuntada. Estaria numa imaginária sucata de cadeiras de rodas se não existissem pessoas como a rapariga de uma perna só. É, em todo o caso, um veículo, ou, pelo menos, assim parece quando a rapariga, driblando os carros, acelera o passo da cadeira. Os braços magros, débeis, ainda não estão afeitos à eficaz manobra das grandes rodas traseiras. É por isso que ela auxilia a locomoção pedalando no asfalto com o pé da única perna que tem.
Depois disso a rapariga que pedia no semáforo desapareceu e, com ela, os enormes olhos azuis que eram a única luz que restava no rosto encardido e gasto. Inquietei-me secretamente (naquele modo post-moderno de nos inquietarmos sem, de facto, chegarmos a fazer coisa nenhuma). Vi-a hoje de manhã quando saía do autocarro, bebendo um sumo à porta de um café, amparada pelas muletas. Estava mais limpa e ganhou algum peso. Pareceu-me saudável e olhei para trás, para vê-la outra vez. Fiquei feliz (naquele modo post-moderno de ficarmos felizes sem chegarmos a demonstrá-lo). A rapariga mantém os imensos olhos azuis que pediam moedas no semáforo e a única perna que tem continua bem fincada no chão – e na vida.