segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Chegar à Lua

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 19 de Janeiro de 20010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)




Uma empresa norte-americana, a Celestis, recebeu uma encomenda um pouco extravagante: levar até à Lua uma cápsula contendo 42 poemas escritos pelo poeta espanhol Miguel Hernández, nascido há cem anos. A ideia é da fundação que adoptou o nome do poeta e, segundo o seu director, Sánchez Balaguer, visa cumprir um desejo expresso por Hernández.

Nunca tinha ouvido falar de Miguel Hernández nem do livro Perito de Lunas, o tal que embarcará para a Lua, mas dez minutos de navegação na internet são suficientes para que um perfeito ignorante fique a saber meia dúzia de coisas que antes desconhecia completamente: que Hernández nasceu a 30 de Outubro de 1910 e morreu, com 31 anos, em Março de 1942. Republicano, como Lorca, tinha sido condenado à morte pelo regime de Franco e estava preso depois de ter conseguido escapar para Portugal no fim da guerra civil (e de ter sido devolvido à procedência por Salazar).

Perito de Lunas, aprendi ainda, foi publicado em 1933, está escrito num tipo de estrofe designado por “oitava real” e contém inúmeras referências simbólicas e influências do Gongorismo, corrente artística da qual Hernández é considerado um membro tardio. Na oitava XXXI, chamada Plenilunio, podem ler-se os seguintes versos: “Puesta en la mejor práctica estás, luna./Ay, sí. No hay que agregarle ya por pena/a tu suma de luz cifra ninguna,/mixta en todo de blanca y de morena”.

Ignoro se o poeta de Orihuela expressou efectivamente o desejo de que os poemas de Perito de Lunas chegassem, um dia, à Lua. Mas sabe-se como é o Homem. “Uma pessoa, aos 55 anos, tem um desejo enorme de acrescentar uma pitada de poesia à sua vida”, escreveu Tiziano Terzani no início de Disse-me Um Adivinho. E certos homens de 40 anos, ou com os 23 anos que tinha Hernández quando publicou Perito de Lunas, não são muito diferentes: põem-se sonhadores e poéticos, dados a devaneios. Suspiram e dizem coisas tolas.

A ideia de fazer transportar Perito de Lunas até à Lua é, em todo o caso, bonita, mesmo se Miguel Hernández morreu 27 anos antes de Neil Armstrong ter dado o passo inaugural da humanidade no pó lunar. Mas, tratando-se de alguém que foi simultaneamente poeta e republicano, suponho que Hernández tenha acalentado outros desejos e outros sonhos; que tenha acreditado na possibilidade de um mundo melhor e mais justo ou noutra utopia qualquer, na qual não houvesse lugar para os Haitis deste mundo, nem para os Sudões ou para os doentes mentais morrendo de frio num manicómio cubano, a proibição de minaretes ou as cidades espanholas jactando-se da redução do número de imigrantes.

Assim é, porém, o tempo em que vivemos. Miguel Hernández talvez tenha acreditado realmente na possibilidade de um mundo melhor e sonhado insensatamente em fazer os seus poemas chegar à Lua. Mas o devaneio, afinal, é mais fácil de concretizar do que a utopia.