segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Tarrafal

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 25 de Agosto de 2009. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



Quando recordo os minutos que passei na antiga colónia penal do Tarrafal de Santiago, em Cabo Verde, a memória mais viva que tenho é a do imenso silêncio que havia lá dentro – como se os muros altos da cadeia ainda a mantivessem isolada do mundo e dos seus ruídos. Rente ao chão de terra seca soprava um vento daninho e mudo que erguia o pó e o levava a contornar os pavilhões amarelados para se perder para lá do horizonte de arame farpado e das palavras de ordem sumindo-se das paredes. Felizmente não acredito em fantasmas ou em almas penadas, só naquilo que sou capaz de ver: vi claramente Gilson benzendo-se quando atravessámos o limiar do torreão central e entrámos no “campo da morte lenta”.

À porta da colónia penal, esperando os turistas, havia crianças muito bonitas e muito pobres, maltrapilhas e sujas. Aparentavam ser capazes de se fundirem na poeira ou na sombra da acácia sob a qual estacionam os autocarros dos visitantes. Geravam uma algazarra lenta e cansada e aceitavam qualquer coisa que se levasse, incluindo uma garrafa de água meio vazia. Ali, do lado de fora dos muros da prisão, ainda se escutavam as suas vozes pedindo isto e aquilo, o tumulto para se verem fotografadas nos monitores das máquinas digitais

(há um rosto do qual não me esqueço: uma menina crioula com uma mão na boca e outra apoiada na ilharga, com pequenas tranças distribuídas pela cabeça e uns olhos amarelos nos quais pareciam concentradas toda a beleza e toda a tristeza do mundo)

mas, uma vez lá dentro, havia apenas aquele silêncio denso que amortecia mesmo o ruídos dos passos e o eco das palavras de Gilson. O nome do tio do nosso guia não consta na lista dos trinta e dois mortos oficiais do campo de concentração do Tarrafal, mas ele benze-se e conta que cresceu escutando a história desse parente que ali entrou e desapareceu sem deixar rasto, desprovido mesmo da sinistra certidão de óbito de Tralheira, o médico que não tratava doentes e apenas atestava a sua morte.

Gilson segue cabisbaixo pelo arruamento central do campo, em direcção ao antigo posto médico, pintado de fresco, passa sob o arco imperfeito das velhas acácias rubras e leva-nos aos pavilhões desertos e escuros, aos recantos onde os presos rabiscaram desenhos toscos. E benze-se sempre, uma e outra vez, conjurando qualquer memória incómoda, algum espectro que pudesse esperar-nos na dobra dos edifícios ou atrás de cada porta. Falamos em voz baixa e não sabemos bem porquê, se por respeito ou para não perturbar o silêncio, aquele silêncio que nem o cão vadio que por ali vagueia se atreve a macular.

Esta memória, porém, está desde há dias preenchida pelo ritmo animado da canção Dodu (Doido), do cabo-verdiano Mário Lúcio de Sousa, cujo teledisco está cheio de belas imagens captadas no Tarrafal, nas celas, nos corredores e no deserto áspero que há em volta. Escuto os acordes da guitarra portuguesa de Dodu, misturados com a perversa recordação do passado colonial da pátria, e creio que sim, que estavam doidos os que acreditaram que bastava um muro de silêncio para impedir que a razão se fizesse clara.