terça-feira, 11 de junho de 2013

Palavras transformadas em canção

Leio Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, e atinjo, enfim, o episódio do funeral, aquele que começa com os versos "Essa cova em que estás,/com palmos medida,/é a conta menor/que tiraste em vida", que o Chico Buarque celebrizou (parcialmente) no tema Funeral de um Lavrador, do disco que, em 1966, dedicou ao poema épico dos retirantes do nordeste brasileiro. De uma forma irresistível, a música que o Chico compôs para acompanhar a melopeia fúnebre embalou-me a leitura até ao ponto em que a canção termina, ainda que o discurso dos amigos do defunto continue. Mas daí em diante a composição musical abandonou-me e fiquei entregue apenas à cadência das palavras de Melo Neto.

A relação que a música e a palavras estabelecem naquilo a que se convencionou chamar canções é uma equação de resultado imprevisível. Há belos poemas que não funcionam com música e extraordinárias composições que não admitem palavras. Quando, porém, as peças se encaixam harmoniosamente, ocorre alguma coisa que é como uma terceira arte. Pude, de resto, constatá-lo ontem à noite, enquanto ouvia interpretar pela primeira vez ao vivo a letra que escrevi para o Bilan, o música cabo-verdiano radicado no Porto. As palavras de Nha Irene adquiriram uma nova dimensão com a composição que o Bilan criou, e mesmo quem não entende o crioulo acompanhou a canção batendo com o pé ou com as mãos a compasso. Foi um momento belo e emocionante, sublinhando uma boa canção escutada na melhor das companhias. Estou, por isso, orgulhoso e grato ao Bilan. Pa fronta!