segunda-feira, 22 de março de 2010

Internet segura

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 16 de Fevereiro de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)





Na semana passada, para assinalar o Dia Europeu da Internet Segura, o Público ouviu uma investigadora segundo a qual as crianças e os jovens recorrem cada vez mais à rede de computadores para fazerem os trabalhos escolares, limitando-se, quase sempre, a plagiar informações e frases. Alguns universitários, parece, fazem mais ou menos a mesma coisa: entram no Google, pesquisam sobre o tema que têm entre mãos e copiam o que encontram, repetindo os erros que existam.

Nós, os jornalistas, não somos muito diferentes. A internet permite, hoje, o acesso quase instantâneo a uma cornucópia imensa de dados, fontes e informações, facilitando muito o trabalho de quem precisa continuamente de se documentar sobre novos assuntos. Mesmo avisados dos riscos, é irresistível a tentação de recorrer ao Google para procurar elementos que, de outro modo, demorariam horas ou dias a compilar. E nem sempre há tempo para cruzar informações e evitar que as inexactidões contaminem o trabalho. Acontece a qualquer um e aconteceu também, pelos visto, ao escritor e filósofo francês Bernard Henri-Levy.

No livro Da Guerra na Filosofia, que tem como base uma conferência proferida na École Nationale Supérieure, Henri-Levy cita o filósofo Jean-Baptiste Botul, autor de um interessante conjunto de intervenções junto de um grupo de neokantianos do Paraguai e do livro A Vida Sexual de Immanuel Kant, publicado em 2004 pela editora Mille et Une Nuits. A coisa soa um pouco estranha, mas, fascinado pelo brilhantismo da filosofia de Botul, que conheceu na internet, Bernard Henri-Levy referiu-se-lhe várias vezes nos últimos tempos, inclusivamente no seu mais recente livro, o qual, ainda por cima, foi bem acolhido pela crítica. Na semana passada, porém, o proeminente pensador teve que engolir em seco e retractar-se.

Jean-Baptiste Botul não passa, afinal, de uma invenção de um jornalista do satírico Canard Enchainé, Frédéric Pagès. Com algum bom humor, o verdadeiro filósofo reconheceu o erro num artigo publicado na conceituada revista La Règle du Jeu, que dirige, e chegou mesmo a felicitar o autor do falso filósofo, considerando “brilhante e muito credível” a visão de um Kant atormentado por demónios mais humanos e distantes do conceptualismo que normalmente se reconhece na sua filosofia. Numa entrevista à Europe 1, Henri-Levy garantiu, gracejando, que todos os outros filósofos citados em Da Guerra na Filosofia são verdadeiros.

Não se imagine, porém, que escrevo movido por qualquer desconfiança radical relativamente às novas tecnologias. Não li, aliás, Da Guerra na Filosofia (nem sequer o admirável A Vida Sexual de Immanuel Kant) e fiquei a saber de todo este enredo graças à internet. Cruzei, ainda assim, a informação que encontrei no site de uma revista argentina: fui ler o artigo de Henri-Levy na La Règle du Jeu e ouvi a entrevista do filósofo na Europe 1 – coisas que, na verdade, não poderia ter feito sem o Google.