domingo, 25 de março de 2012

Os epicuristas lagarteiam ao sol

Crónica urbana da revista 2 do Público, publicada no dia 18 de Março

Se, conforme escreveu José Rodrigues Miguéis, e creio que também Camilo Castelo Branco antes dele, a nossa terra é abençoada para a proliferação de filósofos e de nabos, talvez não calhe mal afirmar, para começo de conversa, que o Jardim Botânico do Porto parece um local privilegiado para observar o lento eclodir destas tão particulares espécies. Que não se tome, porém, o substantivo “nabo” ao pé da letra, mas antes como uma sinédoque que expressa o conjunto das castas vegetais que aqui crescem e vicejam; e assuma-se que todo o indivíduo que amenamente circule pelos caminhos rasgados entre o arvoredo denso é, a seu modo, uma espécie de filósofo peripatético, o qual, enquanto deambula, também medita e se interroga, forcejando, lá está, por tirar nabos da própria púcara.

No que à flora diz respeito, e segundo me explicou o biólogo Nuno Ferrand de Almeida, o jardim onde Sophia de Mello Breyner Andresen brincou e imaginou delicadas ficções beneficia de uma localização única. Está perto do mar, mas não tão perto que aqui cheguem os ventos carregados de sal ou as nortadas agrestes. Tem o Douro no sopé e dele sobem, às vezes, humidades muito propícias ao desenvolvimento de certas plantas mais delicadas. Tudo, enfim, se arranjou para que, apesar do rumor da auto-estrada, ali se sintam em casa as mais diversas espécies vegetais, incluindo o eucalipto da Tasmânia, a casuarina negra, a sequóia, a glauca, o cedro, o bordo do Japão, o viburno, o cipreste de Cartagena, o medronheiro do Texas ou os inquietantes cactos para aqui transplantados das mais inóspitas paisagens do mundo. A lista completa seria, porém, fastidiosa e pouco útil.

Não se viram ainda os nabos proverbiais, mas há-de ter sido uma distracção do jardineiro, ou minha, pois também o tubérculo branco se havia de sentir ali tão em casa como as rãs que coaxam e tomam sol postas nos nenúfares do pequeno lago circular que existe à esquerda de quem entra na antiga propriedade dos Andresen.
A contemplação destas coisas, já se vê, convida a que se circule com vagar entre o arvoredo, pensativamente. A outra opção, que nunca enjeito, consiste em tomar lugar na pequena esplanada que existe voltada para o quadrilátero formado por três paredes de japoneiras em flor e pelo flanco sul do casarão dos avós de Sophia, onde também se pode filosofar com grande qualidade enquanto se sente o perfume da nuvem rasteira e cinzenta de alfazema que atapeta parcialmente esta florida ágora voltada para as delícias do sol de Inverno. Aí se escutam os passos abrasivos de quem chega caminhando pelo saibro do caminho e se desfruta da companhia de outros pensadores da mesma escola hedonista, lagarteando como eu. De vez em quando, furtivamente, passam casais enamorados de mãos dadas, os quais parecem procurar um sítio mais sombrio onde possam discutir importantes amenidades metafísicas e, se calhar, entregar-se a práticas epicuristas.

Está-se, pois, extraordinariamente bem aqui sentado. Se forem necessárias mais evidências do bem que este canto da nossa terra faz pelas coisas do pensamento, conto apenas que chegaram, entretanto, duas jovens estudantes do programa Erasmus, as quais se sentam também e ficam a molhar torradas com manteiga nas chávenas de chocolate quente. Conversam em alemão e, por isso, não sei o que dizem. Mas, sendo aquela a língua de Kant, de Hegel, de Marx, de Adorno, de Nietzsche e de Schopenhauer, não tenho dúvidas quase nenhumas de que também elas aqui vieram para aprender a filosofar.