quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Fintar a vida e a morte: uma entrevista a Rubens Figueiredo (2002)



Já tinha conquistado, em 1999, o Prémio Jabuti na modalidade de
conto. Estava à espera de voltar a ganhar este prestigiado prémio [em 2002]?


Ganhar um prémio gera sentimentos ambíguos. Sem dúvida, é uma alegria. Por outro lado, há livros excelentes que jamais ganharam prémio algum. Os prémios nos lembram que é mais importante confiar no nosso próprio julgamento do que nas legitimações institucionais, mesmo reconhecendo que a intenção delas é generosa. Afinal, põem em relevo a criação contemporânea. O ruim é que, indirectamente, alimentam o ânimo competitivo e suas ilusões.

Veja-se o caso deste “Barco a Seco”, que passou completamente despercebido em Portugal quando aqui foi editado, tendo o prémio conquistado feito com que se voltasse a olhar para ele numa fase em que, muito provavelmente, já vai ser difícil encontrá-lo nas livrarias. O que pensa disto?

Sua observação é muito justa. Mas o que posso pensar, se não que o que importa verdadeiramente num livro é o que está escrito em suas páginas?

A imprensa brasileira descreveu várias vezes “Barco a Seco” como sendo um livro “sobre um pintor de marinhas”, o que parece uma definição bastante redutora. Concorda?

Concordo. E creio que isso reflecte a dificuldade de enquadrar o livro nos moldes de divulgação habituais na nossa imprensa. Esses moldes reproduzem os padrões de percepção mais adequados aos propósitos do comércio. Se, em alguma medida, o livro resistir a isso, já pagará o meu esforço. Ao experimentar essa dificuldade de enquadrar o livro, o leitor já se põe também numa perspectiva crítica com relação ao seu tempo.

Como descreveria o seu próprio livro?

Tenho dificuldade de descrevê-lo. Vejo-o, talvez, como um bolo em camadas, não muito simétricas. O tema que anima o romance pode ser o da sobrevivência. As personagens, cada uma ao seu modo, empenham-se em manter-se vivos, nos planos físico, moral e social. Lutam contra o não-vivo, que se abriga em todos esses planos da existência.

Mas esta estrutura em camadas pode também funcionar como um obstáculo à leitura. É uma estratégia deliberada? Defende que o leitor tem que ser confrontado com este tipo de dificuldades?

Não defendo, de maneira alguma, que se devam criar obstáculos à leitura ou ao leitor. Mas não me parece justo bajular o leitor. Uma obra de ficção engendra muitas hipóteses. Uma delas é o seu leitor.

Fiquei com a sensação de que “Barco a Seco” nos fala também dos limites movediços da identidade, de como é fácil falsificar identidades.

Em algum ponto, o livro alude ao medo que sentimos de sermos vistos como de facto somos. A tensão do livro talvez decorra desse temor que assombra as personagens de modo incessante. Eu gostaria que o livro não apresentasse a fabricação de identidades como algo fácil, muito menos que a tratasse de um ângulo lúdico, ou como um mero jogo narrativo. Pois essa manipulação está no cerne de uma angústia que se irradia por todos os aspectos do cotidiano. O temor de ser identificado, a par da necessidade de ter uma identidade.

Relacionada com a questão da identidade e da sobrevivência, há, no livro, a questão da falsificação. Afinal, o maior falsificador do pintor Emilio Vega é o próprio Emilio Vega. Para além da confrontação entre os parâmetros da falsificação e da autoria, fica no ar a ideia de que a obra de um autor depende muito mais das suas condições sociais do que do seu talento natural. É assim?

Desta vez você me pegou. Não sei o que responder, se não que sua interpretação parece um desses achados com que os críticos enriquecem as obras ao longo do tempo. Muito mais do que as acanhadas declarações do autor, são esses comentários que podem justificar a mera existência de um romance como o que escrevi, e pelo qual, bem ou mal, sou o responsável.

Pode dizer-se que as próprias personagens são, também elas, barcos a seco, vidas que de algum modo naufragaram?

Sou apenas o autor. Não detenho nenhuma autoridade a respeito de como o livro deve ser lido e entendido. Mas suponho que a noção de algo fora do lugar, de algo incompatível com aquilo mesmo de que é feito, possa prevalecer sobre a ideia de naufrágio.

Pelo menos um crítico comparou o livro a “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. Como vê este tipo de comparações?

É natural tentarmos aproximar os livros que lemos. Os romances não se escrevem sozinhos. Queiram ou não seus autores, tantas vezes inflados de ilusões egocêntricas, os romances integram um conjunto, um contínuo de vozes que se confirmam, se contestam ou se rectificam mutuamente. O interessante é que todos são vozes que não emudecem. Cada novo romance faz os antigos falarem de novo, e mais alto. E os romances antigos, por sua vez, como um actor que por um momento se cala em cena, permitem que os romances novos se façam ouvir no contexto de uma história comum.

Aparece também no livro uma ligação estreita entre pintura e literatura, que pode remeter-nos, por exemplo, para o “Manual de Pintura e Caligrafia”, de José Saramago. Foi uma das suas referências?

Tenho de confessar que não. Também tenho de confessar que não sou entendido em pintura e que não saberia traçar um paralelo entre ela e a literatura. Pode ser até que eu tenha escrito sobre o assunto nesse livro. Mas terá sido antes por força das circunstâncias e do material que reuni do que em razão de alguma convicção ou de alguma tese. Tive a impressão de que a pintura, no livro, fosse apenas o campo de uma luta pela sobrevivência. Em seu lugar, poderia estar a arte culinária, a construção civil, o cultivo de tomates. Creio que nisso reside um dos atributos centrais do ficcionista.

Porquê, então, a opção pela pintura?

Sua questão é pertinente. Acho que exagerei um pouco na resposta, embora em última instância creio ser verdadeira. A força específica do ficcionista consiste em, como um actor, ser capaz de encarnar os contextos humanos mais variados, sem possuir conhecimentos especializados de nenhum deles. No caso do meu livro, a pintura veio na esteira de alguns personagens — um pintor e um perito. Essas figuras me vieram à mente em primeiro lugar, quando o romance ainda era menos do que uma hipótese.

A sua escrita parece mais próxima do português “clássico” do que da oralidade brasileira passada para a literatura do seu país. E, por outro lado, confere um cariz intensamente visual à acção, a cada pormenor, como se nos desse a ver um filme ao qual sobrepusesse o raciocínio do narrador. Isto tem apenas a ver com o facto de o livro ter como pano de fundo uma arte visual?

A dita oralidade brasileira, transposta para a ficção, acaba por ser uma convenção literária como qualquer outra. Isso não a desqualifica para a literatura. Longe disso. Apenas nos previne da ilusão de tomá-la como uma matéria bruta extraída da realidade, capaz de conferir autenticidade ao estilo que a exibe.
O efeito visual nos pormenores da acção no meu livro talvez decorra da minha constante preocupação de ressaltar os aspectos concretos da experiência. Minha aspiração foi traduzir em termos concretos as questões oriundas do enredo.

A crítica brasileira não deixou também de notar que, em “Barco a Seco”, o seu habitual humor endureceu. Porque é que isso aconteceu? Desiludiu-se com o mundo?

Os três primeiros romances que escrevi são francamente humorísticos e debochados consigo mesmos. Os três livros seguintes têm outro tom. A mudança não se limita ao desvio do humor. Cada pessoa escreve como pode, à luz do que consegue pensar no momento. O humor, aliás, costuma ser uma defesa que se faz passar por um ataque. Um floreio da mão direita, que desvia nossa atenção daquilo que a mão esquerda está fazendo ou deixando de fazer.

E, neste caso, quis que toda a gente visse o que estava a fazer a mão esquerda. Porquê?

Mas não se trata de toda a gente, de modo algum. Trata-se, digamos, de escrever com as duas mãos. O escritor sabe que trabalha com artifícios e que eles são tudo de que dispõe. Mas não me agrada a ideia de que o escritor deva se comprazer com isso, dar a essa transigência irremediável o caráter de um programa literário e recrutar o leitor para abrigar-se num deleite lúdico.