segunda-feira, 1 de março de 2010
Ajudante do ajudante de deus
Foto do blog do Pedro Teixeira das Neves
Gosto do pintor moçambicano Malangatana, das suas expressivas pinturas e das pessoas de olhos rasgados e melancólicos, de grandes pescoços e enormes dedos, que figuram nos quadros dele. Gosto também que Malangatana se assemelhe a um velho buda negro, lento e pachorrento como um deus, e imagino que isso possa ter justificado que, na semana passada, numa sessão das Correntes d’Escritas, o moderador, Ivo Machado, tenha designado o pintor como “um ajudante de deus”.
Instantes depois, enquanto inventava uma história que espantasse a audiência, Malangatana arranjou forma de fazer com que eu, “o miúdo”, acabasse por ler um dos seus poemas para um auditório repleto, ignorando a minha proverbial gaguez e o medo que tenho ao ridículo da exposição pública. Poucas vezes, na vida, tinha corrido o risco de ler um poema em voz alta, por muito pequena que fosse a plateia, mas, que diabo, era a primeira vez que podia fazer de ajudante do ajudante de deus. Li, pois, o melhor que pude, não tanto pela interposta categoria de auxiliar de divindades vagas, mas pelo prazer de auxiliar um artista como Malangatana. Coisa de miúdos.
Entusiasmei-me tanto com a nova tarefa que, daí a nada, quando o pintor foi instado a cantar a música islandesa que tinha acabado de inventar, me ofereci para acompanhá-lo batucando na mesa das Correntes, como se soubesse o que fazia e aquela não fosse uma das minhas mais ridículas prestações públicas. Batuquei, pois, enquanto Malangatana cantava sons guturais. Se a memória não me atraiçoar, esta há-de ser uma coisa para contar aos meus netos: o irrepetível momento em que ajudei um velho buda moçambicano a cantar para uma audiência de trezentas pessoas.