segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Zaratustra

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 29 de Dezembro de 2009. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



Assim Falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche, tem sido um dos títulos mais vendidos nas máquinas automáticas que existem em algumas estações do metro de S. Paulo, no Brasil. É uma informação um pouco surpreendente, mas talvez só tenha reparado neste pormenor de uma reportagem d’A Folha de S. Paulo por também ter comprado, num momento de optimismo, o livro do filósofo alemão falecido em 1900. Depois, como às vezes me acontece, arrumei Assim Falou Zaratustra numa daquelas estantes destinadas às obras que hei-de ler um dia, quando tiver tempo e disponibilidade mental, o que acontecerá se a futura idade da reforma não se tiver tornado incompatível com a sobrevivência do corpo humano.

Tive, porém, que sacudir o pó ao livro antes da chegada dos suaves dias do meu sossego. O meu filho mais novo, de 14 anos, pediu-mo emprestado e, aconselhado por um amigo, leu o Zaratustra até ao fim.

Fui apanhado de surpresa. Não estou suficientemente apetrechado, sequer, para uma conversa dialéctica que me permita perceber que leitura o moço fez do controverso livro de Nietzsche. Espero, em todo o caso, que tenha dado mais atenção aos aspectos niilistas da obra, à ideia de que Deus está morto e é um estorvo, e menos à possibilidade de criar um super-homem, a qual, isso eu sei, deu origem a interpretações bem funestas e perversas. Devo, porém, permanecer vigilante. O rapaz ouve punk rock, faz skate, veste-se de preto, toca guitarra e pediu-me agora emprestado O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, a perturbadora narração de uma viagem ao Congo que alegadamente inspirou o filme Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola. “Exterminai todas as bestas”.

Não creio, ainda assim, que o herdeiro ameace transformar-se num perigoso intelectual ou, um pouco pior do que isso, que esteja a planear uma invasão da Polónia durante as aulas de Físico-Química. Eu também escutei Ramones e Dead Kennedys, usei botas da tropa e li livros sobre a reforma agrária na União Soviética sem ter sofrido danos comportamentais demasiado graves. Agora que os meus filhos se vão tornando gente crescida, do meu tamanho já, tenho até motivos para estar razoavelmente optimista e orgulhoso. São miúdos extraordinários e bem-dispostos, normalíssimos, e que só correm o risco de serem melhores pessoas do que eu tenho sido.

Nunca podemos saber ao certo no que se vão transformar os nossos filhos quando crescem. Há dias, por exemplo, ouvi uma criança com menos de seis anos, numa emissão da Antena 1, dizer que admira Paulo Portas e que, se tivesse muito dinheiro, comprava uma metralhadora e uma shotgun e matava todas as pessoas de que não gosta (incluindo o primeiro-ministro José Sócrates). Foi um pouco inquietante escutá-lo. Sossega-me saber, por isso, que as minhas crias apostam nas relações públicas e nas artes. São, digamos assim, actividades relativamente honestas e pacíficas.

Para além disso, quando devolveu Assim Falou Zaratustra, o Afonso confidenciou-me que o seu livro preferido continua a ser Os Papéis de K., do Manuel António Pina. Fiquei descansado.