Este é o meu último cibergrama a partir do país dos bávaros. Daqui a algumas horas farei a mala, fecharei a porta e sairei para caminhar na neve uma última vez, lento e nostálgico como Walser quando saía do sanatório. Depois tomarei o primeiro S-Bahn para a cidade e, daí, para o aeroporto. Imagino que farei a viagem com o rosto voltado para os bosques que a neve tornou ainda mais belos e misteriosos, dardejando de gelo e bruma. Procurei, deste modo, reter estas paisagens no precário arquivo da memória.
Ter estado a residir na Villa Waldberta a convite do município de Munique constituiu um privilégio provavelmente irrepetível. O próprio programa da residência internacional de artistas é bastante particular: concedem aos hóspedes tempo para criarem aquilo que muito bem entenderem, para que apenas pensem no assunto ou para o que lhes dê na real gana. Propus-me, todavia, terminar um livro em que trabalho há quase três anos e empenhei-me em cumprir a minha parte do acordo. Está terminado. Ou assim espero. Talvez um dia possa ser lido, mas já pouco depende de mim.
Ter aqui estado permitiu-me escrever, reescrever e cortar, melhorando um pouco o texto que havia escrito e acertando detalhes em que antes errara. Compreendi que o personagem central do romance não podia ter vivido em Planegg, mas mostraram-me um lugar que se adequava melhor ao enredo. Pouco alterei, todavia, daquilo que havia escrito longe da Alemanha, apenas com os olhos da imaginação. Também vi centenas de corvos, ora crocitando, ora voando, ora debicando o seu alimento, e tomei consciência da presença significativa que esses pássaros têm no livro. Mas não sei explicar porquê.
Este foi, pois, um período excepcional, assim como uma interrupção na vida comum, à qual agora regressarei — às ninharias do quotidiano e às minhas pessoas. Espero, em todo o caso, não perder o rasto ao Filipe, ao Igor, à Inti e à Sarah, que comigo partilharam o privilégio de habitar o castelo, nem ao Florin e à Daniela, à Marie-Amelie e ao Martin.
Salvo raríssimas excepções, os textos publicados neste blogue ao longo dos últimos dois meses e meio não teriam sequer existido sem o tempo de que dispus na residência internacional de artistas da Villa Waldberta/Artists in residence Muniche. Estou ainda grato àqueles (poucos e bravos) que foram lendo o que aqui escrevi, sem os quais tudo isto faria ainda menos sentido.