terça-feira, 27 de outubro de 2015

Não mexam na minha chouriça















Um dia, se obedecermos cegamente aos alertas cancerígenos da Organização Mundial de Saúde, havemos de morrer todos muitíssimo saudáveis. Desta vez, o dictat sanitário recaiu sobre as salsichas, o fiambre, o bacon, a carne vermelha e os enchidos, essa ameaça insidiosa e vil. As minhas chouriças estão desde ontem cabisbaixas e tristonhas, os presuntos todos que hei-de comer puseram-se macambúzios e até me parece que agora manquejam um pouco por causa de uma dor que os apanha pelos quartos e que talvez seja uma espécie de ciática post mortem. Safaram-se, mesmo à justa, as duas alheiras que, furtivo, ingeri no fim-de-semana passado, indiferente à histeria da botulina, mas, ainda assim, tenho agora necessidade de me sentar perto das chouriças que tenho em casa e de ficar muito tempo a conversar com elas enquanto fumo escandalosas cigarrilhas. Digo-lhes que não há-de ser nada. Que a OMS também em tempos decretou o malefício cancerígeno do diesel e que não foi por isso que a Volkswagen ou as outras marcas deixaram de produzir os diabólicos motores, nem os carros fatais cessaram de andar por aí poluindo e envenenando o ar alheio. À minha chouriça, porém, não a abandona uma certa melancolia, a soturnidade injustiçada que ontem a acometeu. Digo-lhe que não queira saber dos títulos dos jornais, dos alarmes das televisões. Que hei-de comê-la até que a morte nos separe, prometo. Ela afasta os olhos para a janela, para ver Outubro declinando, o cortejo de morte das folhas dos plátanos, o velório dos aguaceiros. Hei-de comer-te até que a morte nos separe, repito. Sem me encarar, porém, ela verte uma lágrima furtiva e sussurra-me que digo a mesma coisa a todas.