quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Início e fim

Regressei há dias ao lugar da Cal. A casa onde viveu a minha bisavó Emília - e onde passei tantos momentos felizes a despeito de o lugar ser pouco mais do que um tugúrio miserável sem água canalizada, sem tectos, sem conforto nenhum - é agora uma ruína serena que o mato selvagem vai cobrindo aos poucos.

Já caíram os telhados e algumas paredes, e tudo me parece muito mais pequeno e acanhado do que na memória que guardo. A cozinha negra de fumo desabou, soterrando a noite em que, adolescentes à roda do fogo, fumámos cigarros de palha sem que a avó, cega, fosse capaz de nos ver. A varanda de madeira também já não existe e o terraço em cujo pó a avó conseguia adivinhar as horas parece agora demasiado pequeno para as histórias que lá vivi.

A despeito da ruína e da decrepitude, do aspecto quase arqueológico que agora tem, o lugar da Cal e as coisas que há em redor não perdem a sua condição essencial. São, como Castelo de Vide, o lugar das raízes, do começo. A origem e a justificação de uma parte do que sou e do que faço está nos sítios que percorro como se o intervalo da ausência fosse uma abstracção.

Não regresso a Castelo de Vide como nunca regresso à Cal, em Avitoure, Cinfães: sou dali. De um modo cuja explicação exigiria meditações rebuscadas, o miúdo magro que fui continua a correr pelas pedras irregulares dos caminhos agora calcetados, saltando de quelha em quelha ou nas pedras do leito do Bestança. Ao lado da ruína da Cal, num recanto onde as águas da rega formavam um pequeno charco, ainda estou capturando os girinos (a que chamávamos "cabeçudos") quando vêm à tona para respirar.

Voltar à Cal foi como mergulhar no início, num charco matricial a cuja superfície acedo às vezes para respirar o ar reparador da memória. Regressar e sentir os lugares pequenos e acanhados implica que alguma coisa se alterou na própria escala em que medimos as coisas que nos cercam. Talvez a Cal pareça pequena porque cresci. Talvez pareça pequena porque o mundo ao seu redor inchou. Não interessa. Na Cal estou como que de regresso a coisas essenciais e honestas, longe do buzz e das ribaltas, alheio à contabilidade dos likes nas redes sociais e às estatísticas de acessos ao blogue, distante da necessidade de que desconhecidos validem e aceitem o que faço e o que sou.

Na Cal, nas ruínas das minhas origens em Avitoure, Cinfães, sou tudo aquilo que era antes de tudo o que aconteceu depois. Sou aquilo que não faz sentido ser aqui.