quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Baralhar mais um pouco

Uma das perguntas mais frequentes que me foram colocadas a propósito da publicação de O Tempo Morto É Um Bom Lugar é aquela que se relaciona com o facto de um dos personagens ser, como eu era quando o escrevi, um jornalista desempregado. Claro que Herculano Vermelho está preso, coisa que eu nunca estive, mas sempre há quem queira ver na ficção mais biografia do que aquela que lá está de facto.

Parece-me que Mark Twain, enquanto incorrigível praticante de paradoxos, sintetizou a coisa admiravelmente, baralhando-a mais ainda (como, aliás, convém). Numa entrevista que concedeu a Rudyard Kipling, em 1889, disse que as passagens de Tom Sawyer no Mississipi são tão autobiográficas quanto é possível quando um homem escreve um livro sobre si, logo acrescentando, porém, que “numa autobiografia autêntica creio que é impossível que um homem conte a verdade sobre si mesmo, assim como é impossível que consiga impedir que o leitor perceba essa verdade."

Confuso? Talvez seja. Mas quem lê não deve procurar a clareza cristalina dos compêndios de matemática e dos manuais de economia. Os romances não são escritos para proporcionar certezas e nisto reside a sua maior fiabilidade. Há mais honestidade no Quixote do que nas contas de uma empresa cotada em bolsa.