domingo, 23 de março de 2014

Regressar à Madeira e ser estrangeiro


(Texto que não li ontem no Festival Literário da Madeira, na sessão que teve por mote a frase "todos os lugares são no estrangeiro", de Herberto Helder)

A primeira viagem a sério que fiz na vida, destas que envolvem aviões e aeroportos, e nos deslocam para sítios aonde somos turistas ou estrangeiros, foi quando, com 16 ou 17 anos, concorri a uns jogos florais na minha escola secundária. O prémio era uma viagem de três dias à Madeira e devia, para isso, escrever um pequeno ensaio sobre a vida e a obra de Cesário Verde, um poeta angustiado que estudávamos nas aulas de Português.

Ganhei o concurso. Foi, aliás, o primeiro prémio vagamente literário que ganhei na vida, do qual agora me lembrei por causa do convite para regressar à Madeira.

Embarquei num dia de Junho para o Funchal, a cidade insular cujo principal responsável político faz questão de que nos sintamos estrangeiros apodando-nos de cubanos. Simultaneamente cubano, português e portuense, acabei por ficar na Madeira não três dias mas duas semanas, sentido-me cada vez menos estrangeiro. Ou melhor: sentindo-me cada vez menos um turista e cada vez mais alguém que flanava ociosamente pela marginal e pelas esplanadas da marina, e que, pelo menos uma vez, se emborrachou muito literariamente, à moda dos poetas malditos de antigamente, alcoolizando-me certa tarde com uma sucessão cruel e louca de ponchas, pés-de-cabra, absinto e provas gratuitas de vinho da Madeira.

Já não me recordo se escrevi, então, alguma coisa. Ao adolescente que então era não terá sequer ocorrido que aquele excesso báquico pudesse ser a manifestação de um qualquer spleen ou mal de vivre, enfermidades bestialmente poéticas e literárias que uma médica pediatra linda de morrer me diagnosticou quando, para meu azar, eu já tinha mais de 30 anos e não estava, portanto, em idade de me curar. Fosse, então, um pouco mais esperto, ou menos distraído, e teria podido perceber que o mal de que enfermava, e talvez enferme ainda, era, se calhar, muito semelhante ao do próprio Cesário Verde, o poeta lisboeta que nunca deixou de se sentir marginal e estrangeiro na sua própria terra, enegrecendo com a soturnidade e a melancolia que detectava no anoitecer das ruas de Lisboa.

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

escreveu Cesário n’”O Sentimento dum occidental”, cuja leitura menos apressada talvez me tivesse poupado a grandes desaires posteriores envolvendo gélidas mulheres bizarramente estranhas e demasiado belas para serem amadas por padecentes do ocidental spleen, mas que também, e sobretudo, me poderia ter alertado para o permanente e irresolúvel mal-estar que sempre oporá a jaula nauseabunda da vida na cidade, nas palavras de Cesário, e as suas coisas mágicas e concretas, como o “cheiro salutar e honesto do pão no forno”.

Talvez esteja nos genes de quem não seja capaz de viver alheado do mundo à sua volta esta permanente estranheza, a insatisfação com tudo e com todos os lugares, a absoluta incapacidade de em algum momento sermos capazes de nos sentirmos em casa, simples cidadãos acomodados e saciados. Seja em Herberto Helder, o autor da frase que dá mote a esta sessão, em Cesário Verde ou em tantos outros, o impulso literário parece frequentemente confundir-se com o questionamento permanente do enredo com que a realidade cerca o indivíduo e procura normalizá-lo e amestrá-lo.

Há-de ter sido por isto que um outro poeta, creio, escreveu que a maior viagem é sempre aquela que fazemos ao interior de nós mesmos. Ou que Bernardo Soares, o heterónimo de Pessoa, redigiu aquele lapidar “que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado?”.

"Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos”, escreveu Bernardo Soares logo adiante, sintetizando provavemente a estranheza que, de algum modo, sempre acomete o escritor diante das coisas, pessoas, cidades, paisagens e países que o rodeiam — tudo estrangeiro, distante, alheio, outro.

Pela minha parte, a viagem, a deslocação a países e sítios, aborrece-me muitas vezes, ao ponto de ter inventado, no livro “Aonde o Vento me Levar”, um personagem capaz de viajar por África sem que eu tivesse de me mover, provavelmente para não ter de me sentir em África tão estranho e estrangeiro como frequentemente me sinto na minha cidade (ou diante do espelho).

Criei M. para que se perdesse em África e, desse modo, se reencontrasse, talvez esperando reencontrar-me a mim, do mesmo modo aleatório que levou Cristóvão Colombo, perdido no Atlântico, a descobrir a América. M., porém, não se reencontrou, não achou na peregrinação africana nenhum sítio que não fosse estrangeiro, nem sequer na alma, como lhe chamava Pessoa, no espírito, como lhe chamam outros, ou no grande caldeirão confuso que M. e eu temos no lugar da cabeça.

Estrangeiro em todos os sítios fora de mim, provavelmente estrangeiro do meu próprio corpo, eis-me hoje regressado ao Funchal tantos anos depois e ainda um cubano mais. Mais logo, quando anoitecer, hei-de se calhar sentir abater-se sobre mim a mesma soturnidade e melancolia que Cesário Verde percepcionava em Lisboa, na sua Lisboa. E talvez, como outrora, como há três anos quando regressei pela primeira vez, volte a emborrachar-me nos bares da poncha e a deitar-me zangado comigo e com o mundo — como Fernando Pessoa em flagrante delitro ou simplesmente como eu: adolescente, adulto, estranho, estrangeiro, incómodo, um pouco extravagante e, enfim, deslocado de tudo.