sábado, 15 de fevereiro de 2014

Melancolia na margem sul

Está finalmente lido o romance As primeiras coisas, do Bruno Vieira do Amaral. Trata-se do livro de estreia do Bruno na ficção, mas isso não interessa nada. O Bruno também faz o favor de ser meu amigo, o que interessa ainda menos. A obra é incisiva como a ponta de um bisturi, remexendo as vísceras da memória de um narrador que regressa, vergado pelo fracasso, ao bairro pobre da margem sul do Tejo onde cresceu. Talvez não seja, em termo formais, um romance clássico. Arranca como se o fosse, e as primeiras cinquenta páginas lêem-se de um fôlego só, mas depois a narrativa como que se suspende e se transforma numa galeria de personagens, todas igualmente notáveis, simultaneamente canalhas, torpes e enternecedoras. O melhor de tudo, ainda assim, será a voz do narrador: a toada que hesita entre o humor e a melancolia, o riso e a dor, a acutilância e a desistência — que escreve (e se escreve)  como quem procura um caminho e, ao mesmo tempo, como quem sabe muito bem por onde vai.