sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

O velho livro está gagá

Metade de uma vida (na melhor das hipóteses) é tempo suficiente para que centenas de coisas se acumulem em redor de um homem. Eu, à falta de melhor, acumulei livros. Tenho-os espalhados por várias divisões da casa, acumulando uma espécie de pó muito antigo e doce, que os amarelece aos poucos.

Guardo-os, aos livros que já li, com a esperança de, um dia, vir a ter tempo e disponibilidade mental para reler esta ou aquela página que me ficou guardada na memória, ainda que saiba, há muito, que a cabeça se vai estragando aos poucos e apagando uma parte daquilo que gostaria de ter guardado e sempre presente. Já escrevi sobre isto, aliás, num livrito quase desaparecido, As Sereias do Mindelo, cujos exemplares, com cinco anos de idade, principiaram este ano a dar trabalho ao mecanismo de esquecimento que as editoras dedicam às coisas velhas, destruindo-as e transformando-as em lixo industrial reciclável.

Lembrei-me desta coisas nostálgicas e um pouco tristes por causa de Congresso Futurológico, o breve romance de Stanislaw Lem que, um dia destes, me ocorreu reler. Fui, esta manhã, buscá-lo à estante mais baixa da biblioteca e, assim que o abri e tentei folhear as páginas amarelecidas por estes vinte e cinco anos que mal vi passar, constatei que está todo descolado, cada folha separada da anterior, solta, como se se tratasse de uma entidade independente do todo coerente que há-de ser o romance. Temi, por isso, pelo resultado da releitura de um livro tão frágil e velho, esboroando-se aos poucos numa espécie de alegoria da memória que me resta. O velho livro está gagá — e eu hei-de ter envelhecido também.