quinta-feira, 22 de agosto de 2013

O fadista mudo de Cardoso Pires

Devia ser ainda um adolescente com inúmeras borbulhas e furúnculos na tromba quando li o Alexandra Alpha, do José Cardoso Pires. Agora cidadão de encanecida barba, regressei há dias a essa leitura longeva e, percebi entretanto, completamente esquecida. Lembro-me apenas de ter gostado bastante do romance, que foi o meu primeiro Cardoso Pires, mas não retive mais nada. Deste modo, leio o livro (encontrado num mercado de velharias em Lisboa há já mais de um ano, na edição que o Círculo de Leitores fez em 1987) como se nunca antes me tivesse passado pelas mãos — e de novo me maravilho com os enredos e a inventividade linguística de um autor que devia ser de leitura obrigatória, povoado de personagens incríveis, entre a narração marialva das mais divertidas perversões e uma certa ternura.

De tudo o que já (re)li, retive o episódio do fadista mudo num tasco do Braço de Prata, o qual dedilha a guitarra e depois move os lábios como se estivesse cantado o fado do Arsenal, mas sem que nenhum som lhe saia da garganta — como "um homem a cantar numa redoma isolada à prova de som", mas ao qual o coro dos bêbados do tasco vai dando voz, "coisa única (...) ouvir um mudo na voz de um coro de bêbados".

Tratando-se de um caso temporalmente coincidente com a ditadura de Salazar, o fadista sem voz remete para a imagem de um país amordaçado, ainda que Cardoso Pires em nenhum momento o sugira. O mudo, em todo o caso, parece o paradigma de um país cujo queixume fadista pode apenas ser traduzido pela voz inimputável dos borrachões, aos quais ninguém fará a injustiça de levar a sério (apesar do adágio que garante que a verdade mora nas palavras das crianças e dos que bebem demais). Cinquenta anos volvidos, parece-me, a cena havia de ser contada de modo diferente, talvez pelo seu exacto avesso, ou não se tivesse Portugal transformado num palco onde (quase) todos ralham e cantam de viva voz, cada um para o seu lado numa ruidosa cacofonia, parecendo, porém, que, aos olhos de quem escuta, nos limitamos a mover os lábios sem que nenhuma palavra se faça realmente ouvir.