domingo, 26 de maio de 2013

A Europa em tempos de cólera



(intervenção na última mesa do encontro Literatura em Viagem, estar tarde, em Matosinhos)

Devo, para início de conversa, confessar que sou bastante incompetente para me pronunciar sobre questões com a gravidade de um eventual conflito Norte/Sul, ou sobre o fim do sonho europeu, conforme sugere o programa desta mesa. Tenho para mim, aliás, que, caso soubese alguma coisa de substancial sobre estes assuntos, não teria chegado ao ponto de me contar entre os vários milhões de desempregados que actualmente existem no continente europeu, mais ou menos caminhando às cegas como os personagens de um romance do José Saramago. Não contem comigo, pois, para ser aquele que, vendo alguma coisa, há-de guiar os outros até um lugar seguro. Estou tão perdido como qualquer um e, ainda que me animasse uma vontade sincera de colaborar na abertura de novos caminhos, o mais certo seria conduzir-nos a todos para um beco sem saída (como, aliás, tenho feito com a minha própria vida).

Assim, e encontrando-me num evento que inclui na sua designação as palavras “literatura” e “viagem”, permitam-me que aproveite este momento para contar uma história que talvez nos ajude a entender alguma coisa entre a grande barafunda a que isto chegou — para citar uma frase do saudoso capitão Salgueiro Maia, talvez o único verdadeiro herói da nossa história recente: ele libertou-nos, concedeu-nos a possibilidade de escolhermos quem nos governaria e não ficou, depois, a governar-se a si mesmo.

A história, pois.

Em 1993, quando ainda era um jornalista promissor em início de carreira (e não, como hoje, um jornalista desempregado de meia idade e sem préstimo), fiz uma viagem de trabalho à Alemanha. Visitámos palácios bávaros e cervejarias, cidades universitárias e vilas muralhadas. Pareceu-me tudo muito organizado e jeitoso, limpo, mas nada me impressionou tanto como o facto de uma das guias turísticas a quem cabia acompanhar o grupo de jornalistas portugueses nem sequer saber que Portugal fazia parte da então chamada Comunidade Económica Europeia.

A Frau Ingrid, chamemos-lhe assim, talvez soubesse, ainda que vagamente, que Portugal é (ou era) um país. Lembro-me, ainda assim, de lhe ter explicado a localização aproximada dessa quimera. Portugal fica ao lado de Espanha, disse-lhe.

A frau Ingrid também não fazia ideia de que uma parte dos impostos que pagava na Alemanha estava a ser gasta para fazer auto-estradas e abater barcos de pesca neste vago e inculto território do Sul. E, muito menos, que esse dinheiro era usado para que os atrasados lusitanos deixassem de trabalhar nos campos, e que, em vez disso, os mais aptos portugueses na arte de sacar subsídios estivessem aproveitando para adquirir quantidades espantosas dos automóveis que se fabricavam na Alemanha.

Aqui ou na Alemanha, a ignorância é uma arma muitíssimo poderosa. Em 1993, suponho que não interessasse ao governo alemão que os seus cidadãos soubesse muito bem em que era gasto o dinheiro dos seus impostos (desde que se lhes garantisse trabalho nas fábricas de automóveis e se assegurasse que os produtos que lá se produziam conquistariam novos mercados abaixo dos Pirinéus). Do mesmo modo, hoje interessará apenas que os seus cidadãos estejam a par de que os madraços do Sul produzem pouco, são perdulários e preguiçosos e gastam mais do que devem, cabendo-lhes, por isso, ser castigados com políticas de austeridade que hão-de, de uma forma ou de outra, reverter em favor dos lucros dos bancos alemães.

Os povos, mesmo aqueles tidos como mais evoluídos, não precisam de saber a verdade. Basta-lhes perfeitamente ficar a par daquela parcela de verdade que, a cada momento, mais convém ao desenvolvimento de uma determinada estratégia política ou económica. À frau Ingrid, por exemplo, não lhe deve ter feito muita diferença saber, em 1993, que Portugal era um dos países que compunham a CEE. É quase certo que essa informação não a fez meditar na circunstância de que uma parte dos impostos que pagava servia para que os portugueses não pescassem o seu peixe nem plantassem as suas batatas. Terá continuado a pagar regularmente as contribuições que a lei estipulava e agora, se ainda for viva, nem sequer lhe ocorrerá que uma parte do desequilíbrio orçamental dos perdulários do Sul é responsabilidade também dos governos alemães, dos eleitores alienados e dos juros de usura que os bancos alemães cobram para financiar os países menos desenvolvidos. E também é possível que esta nova informação não fosse suficiente para mudar a forma como frau Ingrid vê o mundo e a vaga quimera o sonho europeu.

Pela minha parte, há também muitas coisas que ignoro. Por exemplo: não sei até que ponto não fomos, também nós, mantidos na ignorância, para que não víssemos o buraco que estávamos a escavar elegendo sucessivamente os políticos que nos prometiam o tal sonho europeu; e também não sei se esta história deve permitir que dela se extraia uma moral qualquer, como nas velhas fábulas. Estou capaz de arriscar, ainda assim, que, entre a ignorância que hoje sustenta o desejo de ver os madraços do sul castigados, e a ignorância que antes permitiu a solidariedade Norte/Sul, é melhor que seja o proverbial diabo a fazer a escolha. Eu não sou capaz.

A construção de uma identidade e de uma comunidade europeia, como de uma identidade nacional ou de uma identidade local, só faz sentido, para mim, com a participação consciente de todos aqueles que a integram. Pertencer e participar conscientemente implicam um esclarecimento permanente, claro, sem mentiras nem manipulações.

Se me impedem de entrar num bar alegando que o estabelecimento já está cheio, como recentemente aconteceu a um amigo meu, e eu vejo que as outras pessoas, talvez por estarem mais bem vestidas do que eu, continuam a entrar, não fico apenas irritado com a gerência; prometo a mim mesmo que não volto a pôr os pés naquele sítio.

Temo que isto acabe também por suceder aos europeus que, indesejáveis, vão sendo barrados pelos porteiros da Europa.