sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Memórias em pó de giz

(texto da intervenção nas Correntes d'Escritas)

Quando me pus a pensar nos tema proposto para esta mesa, “E eu já nada sei soprar sobre as palavras”, num primeiro momento apenas me ocorreu, muito prosaicamente, a alínea d) da conferência de Eduardo Torres no Congresso de Escritores de Todo o Continente, celebrado em 1967. Propõe a hilariante personagem de Augusto Monterroso que as autoridades sanitárias de cada país, devidamente identificadas, coloquem ventiladores ad hoc nas casas dos escritores mais pobres, “de preferência perto das suas máquinas de escrever, ou das suas canetas”, para “ventilar de forma adequada as suas divergências”.

A ideia, com aquilo que tem de prático e de surreal, pareceu-me, no contexto em que aqui estamos, útil também para quem tenha maiores dificuldades com o arejamento das ideias e das palavras. Deste modo, os ventiladores soprariam sobre as palavras algum ar, de preferência puro e vindo da rua, que é onde, de um modo geral, se encontram os pequenos e insignificantes milagres da vida, mas também as canalhices mais sortidas e os fiscais das finanças interpelando os cidadãos para saber se pediram factura disto ou daquilo.

Não viria aqui, em todo o caso, incomodar-vos por tão pouco.

Naquilo que tem de metafórico e de poético, a expressão “soprar sobre as palavras” lá acabou por fazer três ou quatro carambolas no elástico tenso das minhas células nervosas. Como numa partida de flipers, acenderam-se, assim, uns quantos painéis luminosos, devolvendo-me aos bancos da escola primária. Aí revi o professor Orlando escrevendo com giz palavras no quadro negro e, depois, apagando-as e soprando — lá está — o pó branco que delas sobrava.

Se é verdade que uma parte daquilo que somos tem a sua primeira e talvez mais definitiva configuração durante o período da infância, também é provável que se encontrem aí as influências primordiais do indivíduo que, anos mais tarde, se transforma em escritor. Tive, aliás, a clara consciência disto quando, há pouco tempo, reencontrei duas colegas da sala do professor Orlando, as duas Martas, as quais se recordavam de que as minhas redacções eram sempre as melhores da classe.

Tomado de certa vaidade, optei por não tentar desmentir uma memória tão lisonjeira. Recordei-me, isso sim, que foi na escola primária que escrevi o meu primeiro jornal, produzindo o seu único exemplar em papel pautado, com desenhos toscos no lugar das fotografias. A rapariguinha que o adquiriu por vinte escudos (creio que se chamava Bárbara; ou Sofia) quis devolvê-lo no dia seguinte, mas nem isto me impediu, depois, de passar vinte e três anos a escrever notícias que, no dia seguinte, podiam perfeitamente ser devolvidas ao remetente por falta de frescura (para não imaginar coisa pior). O desaire, aliás, também não me serviu de aviso quando, mais desembaraçado nas coisas da redacção, também quis tentar ser escritor e comecei a escrever livros com a mesma inocência do rapazito que decidiu escrever um jornal inteiro de um só exemplar.

Durante o nosso reencontro num restaurante do Porto, as duas Martas reconheceram também que alimentaram, naquele tempo, um fraquinho por mim, e puseram-se muito enciumadas quando lhes disse que a personagem que num livro rejeita o narrador não tinha sido inspirada por nenhuma delas, mas por outra rapariga da nossa escola, um pouco mais velha do que nós, a qual nunca aceitou perder-se de amores por mim.

A mais nova das Martas, porém, pareceu ter ficado mais apaziaguada quando, no mês passado, lendo Uma Mentira Mil Vezes Repetida, descobriu que o labor falsário do narrador desse livro termina quando ele encontra uma Marta nas ruas do Porto. “As Martas influenciaram o teu imaginário?”, perguntou-me ela, provocadora. E eu tive de reconhecer que sim; que, mesmo inconscientemente, o meu imaginário literário deve muito àqueles dias de palavras desfeitas e sopradas em pó de giz, e que talvez haja um pouco dela, Marta, em cada mulher que invento nos livros.

Talvez os personagens dos meus livros sejam todos, de algum modo, tributários das recordações que tenho. Haverá neles alguma coisa do Rui Maluco, do Bailarina, das Martas, da Sofia, da Otília, da Anita, da Bárbara, ou do Nuno, o mocito loiro de quem as Martas gostavam mais do que de mim. Há neles também algo dos meus vizinhos mais patuscos, das minhas tias velhotas, dos lavradores da terra da minha mãe e dos livros de quadradinhos do Tio Patinhas e do Major Alvega, que foram as minhas leituras mais instrutivas durante demasiados anos.

Mesmo os beijos com gosto a dentes podres, que já por mais de uma vez apareceram nos meus livros, encontram a sua origem naquele tempo, ainda que não me lembre já do nome ou do rosto da moça cujo peculiar ósculo (sim, foi só um) me ficou tão indelevelmente guardados na memória.

Como o pó branco que sobrava das palavras escritas a giz que o professor Orlando sacudia e soprava — infiltrando-se depois nos interstícios das tábuas do soalho, onde talvez continue irritando o nariz das gerações —, o que hoje sou e escrevo resulta em grande medida do que vi, vivi e senti naqueles dias da infância. Estas memórias, aliás, declaram-se agora cada vez mais descaradamente em cada gesto e em cada medo, sendo mais e mais difícíl soprar da minha escrita os resquícios da poeira daquele tempo.

Em todo o caso, não sei nem quero saber soprar os derradeiros grãos das minhas memórias de giz.

Só nos apercebemos disso demasiado tarde, mas a infância é o melhor tempo das nossas vidas. Pelo menos não se pagam impostos.