segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Os trabalhos do podador infinito


Escuto com alguma regularidade, ao despertar, os motores das serras eléctricas que vêm abater as árvores maiores da minha rua. Hoje, se as contas não me traem, já pereceram três exemplares com várias décadas de crescimento, cujos pedaços tombaram ao chão com grande estrondo. O pavimento tem estado, pois, semeado das rodelas grossas dos troncos e dos ramos mais fortes (talvez doentes, ainda que belos), e inquieta-me um pouco que, quando a última árvore grande tiver sido retalhada e levada como lenha, serão precisos muitos anos até que a rua volte a ter exemplares tão notáveis.

Nos intervalos do grande desbaste, os podadores também se entretiveram a aparar os galhos das árvores mais pequenas. Toda essa lenha foi, depois, sendo recolhida por camiões dotado de garras metálicas. Há pouco, quando ia pôr um envelope no marco do correio da esquina, descobri que o velho adereço de "mobiliário urbano" desapareceu também. Ocorreu-me, por isso, e um pouco insensatamente, que o marco do correio tenha sido igualmente podado (e não por engano).

Os podadores que continuam, neste instante, serrando os troncos das árvores da minha rua são, afinal, uma espécie de sinédoque do país que temos. Semana após semana, também o governo vai podando os rendimentos dos portugueses, retalhando-os com taxas, impostos e contribuições especiais. Já temos, parece, a maior carga fiscal da Europa, o que não impede, mesmo assim, que prossiga igualmente a infatigável poda dos serviços públicos que nos são prestados (incluindo o luxo de um marco de correio na esquina ou os serviços de saúde básica em hospitais que voltaram a ter índices de mortalidade infantil de há dez anos atrás). O grande desbaste está em curso, pois. E o nosso podador parece infinito.