segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Enquanto os tubarões refocilam


Mais ou menos a meio de Moby Dick, a tripulação do Pequod pesca o seu primeiro cachalote — um espécime gigantesco, "o dorso enorme, brilhando com uma cor etíope" e reflectindo os raios solares "como um espelho flutuante". Morta a baleia, no meio de "uma mancha vermelha do sangue que lhe descia dos flancos como regatos na encosta de um outeiro", o cetáceo foi arrastado e preso a um dos flancos do barco. Só depois, no dia seguinte, a baleia foi esquartejada para que se lhe retirasse, com a ajuda de guindastes e cordas, a valiosa camada de gordura, a qual se desprende "exactamente como a casca de uma laranja". Findo este procedimento, o que resta do cachalote é deixado à deriva, para que os tubarões e os pássaros se alimentem dessa massa ainda enorme, "colossal", cintilando "como um túmulo de mármore branco".

Para que se não choquem desnecessariamente, direi apenas que a carcaça se afasta do barco lentamente, "até se desvanecer no horizonte", enquanto os tubarões nela refocilam. Lembrei-me, por causa desta descrição de Melville, de uma cena que hoje me contaram, passada nesses apartamentos que retornam à posse dos bancos depois que as famílias atingidas pela crise e pelo desemprego deixam de poder pagar as prestações respectivas. Quem morava naquela casa, acossado pelos tubarões da finança, deixou para trás não apenas o imóvel, mas também roupa, electrodomésticos e móveis novos — "assustadoramente novos", foi a expressão com que mo narraram. Imagino, pois, a vida da família que ali habitava sendo deixada para trás como a carcaça de um cachalote ao qual já se retirou tudo aquilo que podia dar lucro — uma vida lúgubre e triste que se abandona à sua sorte, cintilando "como um túmulo de mármore branco".