quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Entrincheirado e imóvel, à espera da imaginação


Desde que vi os corpos estropiados de uma excursão de porcos cujo transporte ontem se despistou na auto-estrada número 1, estou ainda mais avesso a sair de casa. Sabe-se lá o que pode acontecer a um indivíduo no exacto momento em que decide passar para o mundo inóspito que fica do outro lado da soleira da porta, ou que terríveis acidentes podem aguardá-lo atrás do gume traiçoeiro de uma esquina. Bem escreveu, de resto, o Enrique Vila-Matas numa crónica de jornal: "Simpatizo com os que vão sem ir, com os que dizem ter estado em determinado sítio e logo descobrimos que, afinal, nunca ali estiveram. Gosto deles porque são simples. Quando encontro estes nómadas imóveis, costumo concluir que só as imaginações limitadas precisam de viagens aos estrangeiro".

Estou, pois, entrincheirado e imóvel — e à espera de que a imaginação ilimitada me visite. Recluso, e com largas quantidades de tempo livre entre as mãos (a única fortuna dos desempregados), não tenho, ainda assim, conseguido fazer avançar espectacularmente uma ficção em que me enredei. Isto não significa, de modo nenhum, que esteja paralisado e abúlico, aguardando que um raio me caia na cabeça. Definitivamente não. Com o romance O Colecionador de Mundos, de Ilija Trojanow, tenho dado, por exemplo, largos passeios pela Índia de sir Richard Francis Burton.

Mas não é tudo. Imóvel, tenho-me entretido ainda a congeminar algumas histórias mínimas que têm por únicas personagens todo o qualquer boneco que encontro em casa. Levei um casal de poveiros de barro, figurando um pescador e uma varina, a visitar Barcelona e Marvão. Uma boneca de madeira de belos caracóis loiros foi conhecer uma praia da Bahia, onde uns pescadores locais, muito cafajestes, lhe dirigiram piropos que o bom-senso me impede de reproduzir. O príncipe checo, uma marioneta (como qualquer outra personagem dos livros), foi conhecer Londres e Amesterdão. A princesa boémia, sua cara-metade, viajou até Budapeste e fotografei-a ao atravessar uma rua. E a minúscula Matrioska, até aqui coberta de pó, teve a singular possibilidade de ir passear entre os arranha-céus de Nova Iorque, exactamente como eu faço de cada vez que vejo o Manhattan do Woody Allen. Tudo isto, não me canso de o sublinhar, sem correrem riscos desnecessários e isentando-os de enfrentar qualquer dos inumeráveis incómodos que as deslocações modernas perigosamente implicam.