terça-feira, 16 de outubro de 2012

Nem uma coisa nem o seu oposto


Não sou ainda suficientemente velho para poder beneficiar dessa espantosa medida que isentará do pagamento da TSU as empresas que contratem desempregados com mais de 45 anos. Mas também, e sobretudo, passei há muito a idade de beneficiar da medida que isentou do pagamento da TSU as empresas que contratem jovens desempregados (com o tremendo sucesso que se conhece). Estou, digamos, naquela fase da vida particularmente desagradável em que não posso mais ser aquilo que fui desde que entrei na idade adulta e em que se afigura complicado reciclar-me em outra coisa qualquer, sem sequer um canudinho universitário que favoreça a mudança. Tenho, isso sim, uma idade em que ainda me lembro dos meus tios e primos da aldeia, da minha bisavó alimentando-se de batatas, couves e vinho rasca, sempre um pouco sujos (que não tinham água canalizada em casa, nem electricidade, nem frigorífico, nem casa de banho), sempre muito abaixo de qualquer limiar de pobreza, e penso, às vezes, em quanto tempo faltará para que tenhamos, outra vez, de abdicar dos duches quentes, das refeições completas, da comodidade da electricidade, de uma casa com tecto e pavimento. Os livros que escrevi, por vaidade e soberba, também não se vendem, ninguém os quer, ninguém os lê, e as livrarias devolvem-nos quase imediatamente à sombra dos armazéns, de onde apenas sairão, com sorte, para serem vendidos a preço de saldo. E, todavia, sei que, no dia em que já não puder continuar a fazer aquilo que tenho feito nos últimos 23 anos, aquilo que escrevo será tudo o que me resta. Sentar-me-ei, com toda a probabilidade, na mesma mesa onde janto, ligarei o computador e tentarei escrever contra toda a racionalidade e as evidências, os sinais de que nunca serei tão bom como este ou aquele, nem tão lido como aqueloutro, outra vez num limbo entre uma coisa e outra, entre as papas de milho e vinho dos meus tios da aldeia e a dolce vita que também nunca tive.