quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A merda do Outono

Num só dia, hoje, comecei a ler Al Sur De Los Párpados, o terceiro romance que escreveu o Enrique Vila-Matas, terminei um conto com o qual andava engalfinhado há semanas, comprei uma garrafa de Jack Daniel's e ouvi a chuva metralhando o empedrado da praceta — a merda do Outono, enfim. Também me lembrei de dois amigos doentes, um dos quais já nada deve ser capaz de salvar (não existem milagres, não existem milagres, se existissem milagres ele não adoeceria e viveria para sempre). Vai muito provavelmente morrer sem que nos voltemos a ver nem a falar, deitado numa cama de hospital, sedado, quando devia estar a trabalhar nos seus poemas melancólicos, a rir, a contar longos episódios domésticos, a escrever crónicas sobre os desmandos do país (e logo agora, quando mais precisamos dele). Não nos veremos e não há nisso mal nenhum. Quando me lembro dele, sempre que me lembrar dele, terá os olhos franzidos num sorriso amável ou de troça, e estará ainda a desculpar-se por não me ter ainda mandado um texto qualquer que prometeu e até está na desktop do computador, para ele não se esquecer. Não faz mal. Não tenho pressa. Vou continuar à espera do texto, de que se ponha bom e possa voltar a falar ao telefone, para me perguntar pelo meu filho e me contar coisas de serralheiros e mulheres da limpeza, se li este livro ou aquele, e a dizer-me frases do Stendhal sem ser por nada.