domingo, 30 de setembro de 2012

Limpar as contas


Texto da coluna Piolho dos Livros da revista 2 do Público, publicada no dia 23 de Setembro

Quando vi o título – “Limpe o seu nome agora” – do e-mail que recebi há dias do Brasil, lembrei-me imediatamente de O Vendedor de Passados, o romance que o José Eduardo Agualusa publicou em 2004 e que venceu, depois, um dos mais importantes prémios literários de Inglaterra. O livro conta a história de um peculiar empresário que inventa e vende genealogias de luxo e recordações felizes aos membros da emergente burguesia angolana, enriquecida pelo petróleo e pelos diamantes. "Félix Ventura. Assegure aos seus filhos um passado melhor", lê-se no cartão-de-visita com que se apresenta aos endinheirados clientes.

Ao invés do que sucede com a reconstrução do passado prometida por Ventura, o e-mail da empresa brasileira garantia uma espécie de amnistia geral do presente, das dívidas do presente. Mas os termos do anúncio eram quase tão cómicos e surreais como os do cartão-de-visita do vendedor de genealogias. Dizia assim: “Descubra como limpar o seu nome utilizando métodos totalmente dentro da lei e sem precisar pagar a dívida”. Depois, em letras mais pequenas, explicava que o serviço consiste em apagar os registos das dívidas directamente das bases de dados dos bancos e da administração fiscal. “Ou seja, você continua devendo ao seu fornecedor, não paga nada e nem renegocia as contas, mas (...) as informações das inadimplências não existem mais, e o seu crédito é aprovado por qualquer banco, financeira ou loja”.

Massacrado, como andamos todos, pelos consecutivos anúncios de mais austeridade e pelo consequente encolhimento do rendimento disponível, e ainda a braços com a acumulação de contas a liquidar em Setembro (não é só por acabar o Verão que Setembro é o mês mais triste), lembrei-me de reencaminhar a mensagem da empresa brasileira para o Ministério das Finanças. Acometido por um optimismo exagerado e muito fantasioso, pareceu-me que talvez o país, ou aqueles que o desgovernaram e lhe sujaram o nome, no passado e no presente, pudessem recorrer também aos “métodos totalmente dentro da lei” para, num passe de magia, apagar o défice das contas públicas, os desvios orçamentais e o endividamento externo. Algo, enfim, que, no exacto reverso das promessas comerciais de Félix Ventura (ou talvez não), nos permitisse legar um futuro decente aos nossos filhos.

Angustiado e já muito descolado do senso comum, achei-me desejando, por isso, que a realidade se assemelhasse mais à literatura; que fosse possível, ao menos, eclipsar-me das bases de dados mais desagradáveis, desaparecer e ser esquecido como apenas sucede nos livros e na má publicidade. Como em certas ficções mais exageradas, fantasmagóricas, imaginei mesmo que o chumbo grosso das Finanças atravessava os nossos corpos sem nos tocar. E que, depois, pela madrugada, podíamos ir ensombrar o sono e os sonhos dos ministros e dos secretários de Estado – exactamente como eles nos fazem a nós.