domingo, 19 de agosto de 2012

O Golem


Texto da coluna Piolho dos Livros da revista 2 do Público, publicada no dia 12 de Agosto

Não é nada do outro mundo. Poucas coisas, aliás, serão tão humanas (e tão antigas) quanto a necessidade de inventar deuses e monstros. O povo hebreu, por exemplo, criou fantasias tão espectaculares quanto o deus único e omnipotente ou o Golem. Tendo a simpatizar mais com o segundo, sobretudo desde que me cruzei com ele, há alguns anos, numa esquina de Praga. Fiz-me fotografar ao seu lado, mesmo se, então, ainda não conhecia a descrição que desses bonecos folclóricos fez Jorge Luís Borges – ou deus, como lhe chama o Afonso Cruz no primeiro volume da Enciclopédia da História Universal (a segunda recolha foi recentemente publicada).

No Livro dos Seres Imaginários, Borges explica que Golem é o nome dado “ao homem criado por combinação de letras”, significando, literalmente, “uma matéria amorfa ou sem vida”. E acrescenta que a sua fama no Ocidente se deve à obra do austríaco Gustav Meyrink, o qual, num romance de 1915, o descreve como um homem artificial criado pelo rabino Judah Loew Ben “para que tocasse os sinos da sinagoga e fizesses os trabalhos pesados”. O carácter infatigável deste autómato, mas também o seu feitio regular e obediente, devia-se a uma inscrição mágica posta atrás dos seus dentes, a qual atraía as forças livres do Universo. Borges conta ainda como, por distracção do rabino, o Golem acabou transformado na “raquítica figura de barro” que se encontra nas ruas de Praga.

Na Enciclopédia da História Universal, Afonso Cruz retoma a teoria segundo a qual o Golem tinha inscrita na fronte a palavra emet, verdade, a qual, sem o E inicial, se transforma na palavra morte. Mas, mais iconoclasta e menos apegado à tradição, desenvolve uma teoria segundo a qual esse homem artificial era, isso sim, o mordomo do Coronel Möller e, também, o assassino de Doved Rosenkrantz (seja ele quem for), motivo pelo qual se viu desactivado. Irónico, Cruz atribui a Wilhelm, o filho do coronel, o seguinte comentário sobre o carácter do Golem: “A incapacidade de compreender uma metáfora, que era a característica monstruosa do nosso monstro, revela que este não passava dum pedaço de terra informe, sem a neshamah, o espírito mais fino de todos os espíritos que nos compõem a alma”.

Onze anos depois de ter encontrado o Golem nas ruas de Praga, leio as duas versões e revejo a fotografia em que estou posando ao seu lado, ele vermelho e façanhudo, de fibra de vidro, eu de calções de turista, e o monstro parece-me, sim, um pouco pateta e desalmado, mas não totalmente inanimado. Olhando com atenção, creio mesmo que, entre nós dois, talvez seja eu o mais desprovido de espírito fino, e também o mais tolo. Por muito que tenha tocado o sino da sinagoga e feito todos os trabalhos pesados, não consta que alguma vez o Golem tenha chegado a ser um simples pagador de todos os impostos e mais algum que o Governo ainda queira inventar.