domingo, 22 de julho de 2012

A memória de Gabo


Texto da coluna Piolho dos Livros da revista 2 do Público, publicada no dia 15 de Julho

Não se sabe o nome do nonagenário que narra Memória das Minhas Putas Tristes, o mais recente (e, pelos vistos, último) livro de ficção do colombiano Gabriel García Márquez, publicado em 2004. Mas, por coincidência, também o idoso personagem publicava, aos domingos, uma crónica no El Diario de La Paz. Hoje toca-me a mim fazê-lo e não tenho como ignorar o recente anúncio segundo o qual Gabo perdeu a memória e não voltará a escrever, confirmando, se preciso fosse, que a literatura é essencialmente um exercício de evocação (e reconstrução) de recordações.

Sendo uma decorrência mais ou menos natural da idade que tem, e do efeito dos tratamentos a um cancro, o esquecimento de García Márquez aparece rodeado de uma nuvem de ironias tristes. Desde logo, e ao contrário do que sucede ao personagem, Gabo não chegará aos 90 anos capaz de evocar as concubinas do passado nem, provavelmente, em condições de se apaixonar por uma Delgadina de 14 anos e pele cor de melaço, após uma festiva “noite de amor louco com uma adolescente virgem”. Não poderá, tão-pouco, escrever um livro cujo título inclua a palavra “memória” e, muito menos, concluir o projecto autobiográfico iniciado, em 2003, com o espantoso Viver Para Contá-la. Não se pode, muito simplesmente, contar aquilo que não se recorda, e Gabo, que tem 85 anos, já não se lembra. Não chegaremos, assim, a saber que outros episódios reais inspiraram as ficções de García Márquez (lembro-me sempre que a gloriosa Macondo era apenas o nome de um apeadeiro por onde passava o pequeno Gabo quando viajava de comboio), nem a ver mais episódios banais transformados em grande literatura.

Devo, pois, escrever a coluna do próximo domingo, e ocorre-me precisamente a recordação de que tinha talvez 16 anos quando um colega do escritório de contabilidade me emprestou o Cem Anos de Solidão. Tenho a noção precisa de como lê-lo me transformou, primeiro, num leitor com algum critério e, depois, no jornalista que sou hoje e também num indivíduo que escreve livros, se calhar porque, desde o inaugural ingresso em Macondo, daquela última memória de Aureliano Buendía (“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo”), não tenha feito outra coisa senão alimentar o insensato sonho de criar a minha própria cidade imaginária.

Tantos anos depois dessa leitura, a notícia do sequestro da memória de Gabriel García Márquez acrescenta que Gabo, embora esquecido, continua a “conservar o humor, a alegria e o entusiasmo”. Está vivendo e, por isso, anima-me um pouco a ideia de que isso é o mais importante e que um homem sem memória pode perfeitamente ser feliz, aproveitando cada dia como se não houvesse amanhã ou, sequer, ontem. Já não viverá para contá-lo, mas, depois de tudo o que escreveu, ninguém pode levar-lho a mal.