domingo, 1 de abril de 2012

Da terceira classe



Texto da coluna Piolho dos Livros da revista 2 do Público, publicada no dia 25 de Março

Vi a notícia em Fevereiro, mas quase me escapava: um emigrante de Oliveira do Hospital que trabalhava ilegalmente numa obra em Evere, na região de Bruxelas, foi acometido por uma indisposição e, julgando-o morto, os seus colegas de trabalho transportaram-no para uma zona pouco frequentada de Uccle e aí abandonaram o corpo. Aconteceu a 11 de Fevereiro e a posterior autópsia demonstrou que António Nunes Coelho ainda viveu durante cerca de 15 minutos. Até podia, pois, ter sido salvo se, em vez de tentarem livrar-se de uma multa por utilização de trabalhadores clandestinos, os seus empregadores e colegas tivessem chamado uma ambulância.

Incomodou-me, claro, a notícia da morte daquele português brutalmente abandonado como um pedaço de lixo ou um electrodoméstico que deixou de funcionar. Discretamente alojado entre dois neurónios quaisquer, acabei, depois, por associar o caso ao enredo de “Uma aventura inquietante”, o folhetim que José Rodrigues Miguéis publicou originalmente no jornal O Diabo, em 1934: a acção também decorre na Bélgica, onde Miguéis foi emigrante, e é espoletada pelo aparecimento de um cadáver num parque de Bruxelas, o de Woluwee; mas o único português da história, Zacarias de Almeida, é apenas vítima do sistema judicial, que nele vê um suspeito fácil, e métèque ainda por cima. “Assassino! Estrangeiro! À forca! Abaixo os estrangeiros!”, grita a multidão que assiste à detenção do pacato monsieur d’Almêdá.

Não contarei, descansem, como o caso se deslinda, quando mais não seja porque se cumpriram em Dezembro cento e dez anos sobre o nascimento de Miguéis - e vale absolutamente a pena ler este romance do escritor que, segundo Onésimo Teotónio de Almeida, também radicado há muito nos Estados Unidos, foi, entre outras coisas, “o primeiro e o grande cronista, o narrador e o contista da nossa experiência imigrante”. E também não me esqueço de que, num tempo em que o governo voltou a apontar aos portugueses a porta de saída da emigração, a realidade daqueles que procuram no estrangeiro o emprego que não há em Portugal não é tão cor-de-rosa como a pintam.

Nem todos os migrantes vão ocupar lugares administrativos em São Paulo ou em Luanda, nem esfregar manteiga na barriga nas praias de Moçambique. A maioria trabalha em condições precárias e em sítios onde são vistos como “os estrangeiros que nos vêm roubar os empregos”, apenas um pouco menos indesejáveis, ou mais tolerados, do que os africanos ou os árabes. São aquilo a que, num relato de 1935, José Rodrigues Miguéis chamou “gente da terceira classe”. Vão na classe mais pobre (e barata) de um navio, o Arlanza, e viajam de um lado para o outro à procura de um destino melhor. Alguns encontrá-lo-ão. A outros, como aconteceu no Parc Raspail a António Nunes Coelho, restará, um dia, morrerem longe de casa e dos amigos que se perderam com a distância, sozinhos e inúteis como máquinas que já não servem.