segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Realidade aumentada*



Sensibilizado pela instalação artística que, na semana passada, encheu o belo casarão rosado de Serralves de grotescas pichagens virtuais – que (felizmente) não estavam lá, mas podiam ser vistas graças a um dispositivo electrónico –, pretendia dedicar esta crónica às potencialidades da dita “realidade aumentada”. Imaginei, assim, um mundo em que aquela tecnologia fosse tão comum como a dos telemóveis, permitindo que qualquer cidadão fosse confrontado apenas com uma versão modificada dos factos. Porém, em vez de vermos bonitos edifícios estragados por grafitos, seríamos agraciados com uma versão cor-de-rosa da realidade, a qual, por exemplo, nos evitaria a impressão de que as políticas laborais e sociais do século XXI são muitíssimo parecidas com as do século XVIII. Em vez de austeridade e empobrecimento, teríamos dinheiro no bolso. Ao apanhar sol, em Agosto, sentados nos penedos do Canidelo, olharíamos ao redor e veríamos uma paisagem exótica digna das ilhas privadas do Pacífico. E quando escutássemos algum governante a exortar ao esforço e à participação de todos, teríamos a vaga ideia de que, no tempo das vacas gordas, as benesses, mordomias, tachos e negociatas foram também distribuídas com equilíbrio – e não de modo a transformar Portugal num país com (ainda) maiores clivagens sociais.

Estava ainda a explorar as possíveis aplicações desta tecnologia quando fui desviado por um exemplo prático de realidade aumentada – infelizmente na mesma versão destruidora disponibilizada por Serralves. Vi no Facebook a imagem de uma campanha de “renovação cultural” que a FNAC estava a promover, a qual propunha aos clientes que trocassem Os Maias, de Eça de Queiroz, pelo Amanhecer, de Stephanie Meyer. Neste caso, porém, a abracadabrante campanha existia mesmo e, em traços genéricos, convidava os clientes a entregarem Carlos e Maria Eduarda, Tomás de Alencar e Dâmaso Salcede, recebendo em troca cinco euros para gastar nos enredos de Bella, Edward e da restante alcateia de lobisomens e vampiros (que podem servir para manter entretidos os adolescentes que ainda insistam no hábito bizarro de ler, mas dificilmente hão-de ser lidos daqui a cem anos).

Suponho que, quando escreveu que “ver aquilo que está à frente do nariz requer uma luta constante”, George Orwell não estivesse a defender a necessidade de enfiar o óbvio pela goela do consumidor abaixo. Estaria, antes, a prescrever a conveniência de perscrutar as aparências e de descobrir, por trás dos posters, das ilusões e das parangonas, aquela que é a verdade mais próxima, livre ainda dos truques da realidade aumentada e manipulada. 1984 é (também) sobre isto. Apesar da falsificação das evidências promovida pelos beneficiários do pensamento único, Winston Smith consegue, a dado passo, perceber a existência miserável em que vive. E rebela-se. Exactamente como ontem se rebelaram aqueles que viram apagadas do Facebook as críticas feitas à campanha da FNAC. Insistiram e a promoção caiu. Um dia sucederá com coisas mais sérias.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 31 de Janeiro de 2012