segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Vida inteligente*



A primeira coisa que ontem fiz foi dirigir-me a uma lavandaria para lá deixar o casaco, que tinha ficado pegajoso depois do banho de champanhe que apanhei nos primeiros segundos de 2012. Eu tinha ido cair, meio acidentalmente, na Avenida dos Aliados, e, já que ali estava, deixei-me ficar para ver que tal era o foguetório encomendado para o “rebilhão”. O espectáculo foi admirável: um quarto de hora de efeitos pirotécnicos de encher o olho, demonstrando que não há como a Câmara do Porto para organizar eventos vistosos e ocos. Poupadinha e austera em quase tudo, a autarquia torna-se perdulária e quase madeirense sempre que se trata de fazer corridas de avionetas e automóveis, bem como espectáculos com explosivos, incluindo demolições e foguetórios. Faz lembrar a célebre epígrafe de Maria Antonieta, mas de pernas para o ar: se o povo não tem pão, dê-se-lhes brioches (ou foguetes, tanto faz).

Quando a multidão começou a dispersar após o fogo-de-artifício, o chão da principal praça da cidade encheu-se de garrafas vazias e de milhares de cacos de vidro. Com o avançar da madrugada, o festivo apocalipse estendeu-se à chamada zona de animação nocturna, onde já é costume que as ruas fiquem atapetadas de copos, garrafas, lixo diverso e garatujas de urina, transformando o Porto, pelos vistos, num destino turístico de eleição. O negócio vai, aliás, de vento em popa, justificando, por isso, a espécie de selvajaria que ali vigora depois que o sol se põe – e que ilustra admiravelmente dois versos de um poema de Eugénio de Andrade: “Ninguém ignora que não é grande/nem inteligente, nem elegante o meu país”.

Embora goste de acreditar que, algures entre o espalhafato pirotécnico e a falta de maneiras, há-de ainda subsistir alguma coisa do carácter da minha cidade, temo frequentemente que estejam em vias de ser rasurados os últimos vestígios de vida inteligente que ainda aqui resistam. Basta ver, por exemplo, o modo como a pirotécnica autarquia tem gerido a questão relacionada com o legado do poeta Eugénio de Andrade, um dos maiores que o século XX português conheceu.

Em 1997, a câmara estabeleceu um protocolo em que concedeu ao escritor (e aos seus legatários) uma casa na Foz do Douro, adquirindo a cidade, em troca, direitos sobre o espólio literário e artístico de Eugénio. Seis anos após a morte do poeta, a autarquia tomou posse dos seus bens e, ao mesmo tempo, expediu uma carta intimando aqueles que cuidaram de Eugénio de Andrade a abandonarem o andar que habitam. Entende a câmara que a extinção da fundação que geria o espólio do poeta fez cessar o direito dos herdeiros à casa que a câmara lhes facultou. Levando esta interpretação do protocolo ao limite, poderia o próprio Eugénio de Andrade, se fosse vivo, ser objecto de uma acção de despejo e posto na rua com a roupa do corpo, deixando os seus bens à guarda do município, para eventual privatização futura.

O passado, escreveu Eugénio, “é inútil como um trapo”. Não espanta, pois, que numa cidade já (quase) sem vida inteligente, a memória e o respeito pelos mortos não pareçam merecer melhor sorte.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 3 de Janeiro de 2012