segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Um eterno retorno*



Pertence provavelmente ao domínio das belas coincidências a circunstância de o ano literário português ter principiado e terminado com dois romances cujas narrativas exploram o drama daqueles que, vivendo em Angola aquando da independência do país, se viram obrigados a embarcar para Portugal. Os Pretos de Pousaflores, de Aida Gomes, e O Retorno, de Dulce Maria Cardoso, têm méritos literários indiscutíveis e tratam ambos de pessoas desenraizadas e estigmatizadas, afastadas das suas referências e, por isso, transplantadas numa terra estranha e pobre, retrógrada e hostil, e forçadas a ganhar aqui novas raízes.

Mais recente e tendo sido objecto de maior atenção mediática, O Retorno tem uma trama já relativamente conhecida, na qual milhares de ex-colonos brancos imediatamente se reviram. Rui, um adolescente louro de 14 anos, nascido em Angola de pais portugueses, vê-se retornado a um país onde nunca tinha estado, e hospedado num hotel de luxo do Estoril, num exílio simultaneamente dourado e miserável. Inadaptado e objecto da estúpida xenofobia da época, Rui conta uma história tocante e provavelmente não muito diferente de inúmeras outras.

Os Pretos de Pousaflores constitui, por isso, uma ficção ainda mais radical, na medida em que ao purgatório comum a todos os “retornados” se junta o facto de estarmos perante três jovens crioulos, filhos de Silvério, um português que vivia em Angola há quarenta anos quando, em 1975, achou mais prudente regressar à pátria. Narrado de modo polifónico, o romance de estreia de Aida Gomes leva-nos para dentro do labirinto individual de cada um dos filhos de Silvério (Justino, Belmira e Ercília), confrontados com a vida mesquinha e paupérrima, amarga, de uma pequena aldeia do interior português, e com um racismo ainda mais selvagem e visceral. Não contam, sequer, com o amparo de outros na mesma condição, nem com o rótulo oficial dos “retornados” e com a caridade que lhe correspondia. Sendo tão portugueses como o louro Rui, são, porém, apenas “pretos”, quase alienígenas para os vizinhos e para a tia que os acolhe de má catadura.

De algum modo, Justina, Belmira e Ercília, mas também Rui, parecem-se com os cegos de Saramago avançando pela cidade inóspita agarrados uns aos outros para não se perderem, mas perdendo-se ainda assim. Talvez, contudo, se assemelhem sobretudo a nós, portugueses deste início de século XXI, enredados também na condição de estranhos estrangeiros, ou de párias de estimação, expulsos da realidade que tínhamos e atirados para um país sem esperança, sem emprego e sem remédio que não seja empobrecer para viver amanhã pior do que ontem. Somos oficialmente aconselhados, outra vez, a sair e a procurar uma vida longe do nosso chão, onde os nossos filhos possam sonhar com uma vida melhor do que a nossa. Alguns de nós partirão atrás das novas Áfricas e, um dia, fustigados pela intolerância em que o Homem frequentemente se amesquinha, talvez tenham que regressar outra vez – e começar de novo.


*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 13 de Dezembro de 2011