segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

A infantilização em curso*



Tenho andado a ler um livro muito bizarro e louco, Ferdydurke, que o polaco Witold Gombrowicz publicou em 1937. O romance é tão absurdo, tão irreal e desconcertante, que, tolo como sou, dei por mim a achar que aquela narrativa celerada se parece bestialmente com a realidade.

O enredo do romance conta como Józio, um homem de trinta anos, é submetido a um rigoroso (e paródico) processo de infantilização, de modo a que volte a ser um adolescente inocente e ingénuo. É encaminhado para a inenarrável escola do professor Piórkowski, especializada em educar uma juventude inquieta e disparatada, que resiste ao ensino proferindo palavrões muito selvagens. Submetido ao tutu, Józio mergulha, de facto, numa espécie de segunda infância, radical e insana, comportando-se de forma totalmente alheia à normalidade. De resto, quase tudo no romance acontece ao arrepio do trato comum das coisas do mundo – um pouco como se os ministros de um país mergulhado na crise e na austeridade se deslocassem em automóveis topo-de-gama para os locais onde haverão de comentar o aumento do desemprego e anunciar novos cortes nas prestações sociais.

A realidade, por muito disparatada que pareça às vezes, não tem evidentemente espaço para episódios tão absurdos, nem nos adestra, apesar de tudo, para sermos adultos infantilizados e, por isso, dóceis e receptivos a quase todos os sacrifícios e ordens que os tutores nos queiram impor. Não somos, por exemplo, inocentes e ingénuos ao ponto de acreditar que seja possível perder direitos adquiridos sem mexer um dedo; ou de nos ser possível conceber que um só deputado possa votar pelos outros todos, quando a razão nos diz que cada indivíduo eleito para representar o povo vota sempre de acordo com a sua consciência individual e salvaguardando os interesses daqueles que o elegeram.

Ferdydurke é tão disparatado que só um espírito muito perturbado (como o deste vosso criado) pode chegar a vislumbrar alguma relação entre o puro destrambelhamento da ficção e a exemplar organização do real. Qualquer pessoa normal entende perfeitamente, por exemplo, que aquela sociedade infantilizada não tem nada a ver com a Polónia real e concreta que, dois anos depois, havia de ser invadida e facilmente ocupada pela Wehrmacht de Hitler e, depois, por Moscovo.

Vivemos, felizmente, num tempo de gente madura e com sólida formação cívica, no qual dificilmente se encontra espaço para o absurdo. Entre nós, bem entendido, as coisas acontecem de acordo com regras precisas e indisputáveis, sem a intervenção de histerismo aleatórios. Aniquilam-se a agricultura e as pescas quando isso faz sentido e lançam-se projectos mirabolantes, tipo expos e assim, quando é o melhor para todos. Por isso, quando Mietus, um dos personagens do livro, se lança em busca de um camponês que o redima, não me ocorreu, por um instante sequer, o programa de repovoamento agrário que o nosso bondoso presidente tão consequentemente defende.

A literatura, como se sabe, está cheia de ideias muito insensatas.


*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 29 de Novembro de 2011