segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Sair da crise*



Se os cálculos dos especialistas estivessem correctos (mas eu desconfio cada vez mais dos especialistas e dos respectivos cálculos), o mundo passou ontem a contar com sete mil milhões de habitantes. Nas Filipinas, por motivos que suponho puramente simbólicos, fez-se mesmo uma festarola para saudar o nascimento de Danica Camacho, uma menina de dois quilos e meio parturejada num hospital público de Manila. Trata-se de uma ironia trágica: Danica nasceu para viver num dos países mais pobres do planeta e, ainda assim, alguém se deu ao trabalho de celebrá-lo numa unidade de saúde invadida por jornalistas.

A festa não foi totalmente em vão. Talvez, daqui a quinze ou vinte anos, Danica esteja já contribuindo para o progresso económico mundial, cosendo camisas ou sapatilhas de marca numa daquelas fábricas cujos operários labutam quase de graça (menos de um dólar /dia por jornadas de 14 horas de trabalho), produzindo bens de consumo que, depois, são vendidos nos países ricos com lucros astronómicos que cairão nos bolsos do costume – isto, evidentemente, se a presente crise não limitar de modo excessivo os actuais padrões de consumo. Também pode suceder que o crescimento económico dos países “em vias de desenvolvimento” seja capaz de compensar a estagnação das “economias modernas” e que Danica esteja, nessa altura, usando sapatilhas e t-shirts produzidas em algum país africano em franco desenvolvimento, cuja abundante mão-de-obra esteja já tão desesperada e outra vez tão bem adestrada que seja capaz de produzir bem e barato (como nas sanzalas), substituindo os chineses, os vietnamitas ou os filipinos.

Querendo ser absolutamente optimista, até para contrariar a quadra fúnebre vigente, estou mesmo disposto a acreditar que o Governo português está cheiinho de razão. Se o milagre económico filipino permitiu que a dívida externa daquele país baixasse dos 79% do PIB em 2003 para os 39% em 2009, não há motivo nenhum para que não sejamos capazes de um feito ainda mais espectacular. Tudo vai de sermos capazes de obedecer ao desígnio nacional que o presidente do conselho de ministros não se cansa de indicar, florescente como os amanhãs que cantam: temos que empobrecer para sair da crise.

Se formos capazes de aliar o prometido empobrecimento ao crescimento demográfico que o presidente da república tão visionariamente tem defendido, ainda há esperança para Portugal. Basta, para que o país se salve, que o número de desempregados continue a crescer de forma sustentada, que os níveis de protecção social se reduzam, que os salários baixem para níveis “competitivos” e que os portugueses passem a multiplicar-se como coelhos (ou como católicos decentes). Daqui a 20 anos, quando Danica Camacho já puder comprar sapatilhas de marca, é possível, pois, que elas sejam produzidas na mais dinâmica e produtiva região do mundo, esse vasto continente que vai do rio Minho ao Cabo das Agulhas. Com sorte, “e se deus quiser”, o bebé oito mil milhões há-de nascer em Barcelos. Ou em Lagos – na Nigéria.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 1 de Novembro de 2011