segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Ouvir vozes*



Agora que penso nisso, é um pouco estranho que nunca antes tivesse convocado o doutor House para esta crónica. Faço-o hoje por causa de um episódio no qual o casmurro médico anda às voltas com umas vozes que lhe soam dentro da cabeça, chegando a supor que se trata de uma alucinação auditiva. O surto acaba por ser resolvido – salvo erro porque House descobre que a voz provém de um respiradouro oculto sob um tapete –, mas, ainda assim, lembrei-me dessa ocorrência por causa de um advogado do Rio de Janeiro que alega receber mensagens de Nossa Senhora.

Pedro Siqueira, de 40 anos, fala com santos, anjos e mortos desde a mais tenra idade. Há alguns anos, começou a transmitir o teor dessas comunicações em igrejas, com a ajuda de um violão. Já oficiou estas cerimónias em vários templos e tem dado muitíssimas entrevistas, até na televisão, explicando que vê a Virgem exactamente como se ela fosse de carne e osso; a única diferença é que a santa lhe aparece dentro de uma luz, às vezes descalça, “em túnica violeta e véu branco”, mas invariavelmente “bela, sorrindo”. Siqueira também já lançou um livro, Senhora das Águas. Segundo li, fê-lo a pedido expresso de Nossa Senhora, que lho transmitiu durante uma peregrinação a Fátima (mas parece que não ordenou a distribuição gratuita da obra tendo em vista uma mais ampla difusão da mensagem, pelo que o livro custa 32 reais, cerca de 13 euros). O advogado iniciou, entretanto, uma espécie de tournée divulgada no Facebook.

Qualquer pessoa que acompanhe as inúmeras séries televisivas dedicadas ao exercício da Medicina sabe que este género de contactos paranormais tem uma causa fisiológica qualquer, frequentemente um aneurisma ou alguma patologia do foro neurológico ou oncológico. Com alguma sorte, o doutor Derek Shepherd do Seattle Grace consegue resolver o problema executando uma daquelas cirurgias muito complicadas e fascinantes. Pedro Siqueira, porém, afirma que, quando era mais novo, os médicos (“neurologistas, psicólogos e psiquiatras”) garantiram que ele não tem problema nenhum. Mas, conforme se aprende na televisão, o diagnóstico destes casos nunca é simples e os 40 anos, já se sabe, são uma idade muito traiçoeira. Há indivíduos saudáveis que cometem a imprudência de fazer um check-up e frequentemente descobrem que, afinal, estavam doentíssimos.

Reconheço que as vozes interiores transmitem mensagens muito impressionantes (no domingo, por exemplo, senti-me subitamente poderoso enquanto corria na Foz, mas depois percebi que era por causa de uma cantiga que estava a tocar no iPod) e não desejo nenhum mal a Pedro Siqueira. Faço votos, aliás, para que seja apenas um simples vigarista, mais inócuo, em todo o caso, do que certos eleitos que passaram anos a ouvir a voz dos mercados aconselhando a que se gastasse dinheiro como se não houvesse amanhã. Deu no que deu, mas os sujeitos alegam agora ouvir mensagens com a mesma proveniência, indicando, porém, que se deve empobrecer, vender empresas públicas e criar desempregados. E eles mandam.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 8 de Novembro de 2011