quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Dois gatos*



Uma destas manhãs, numa janela pela qual passei, reparei em dois gatos que estavam postos ao sol sobre o parapeito, do lado de cá das cortinas fechadas (e do lado de lá do vidro sobre o qual o sol incidia com a força das quase dez horas). Um dos bichanos, talvez por ser domingo ou assim, estava ainda enroscado sobre si mesmo e dormindo acintosamente de costas voltadas para os transeuntes num tufo de pêlos e riscas de duas cores, se são realmente cores aquilo que dá tom aos gatos. O outro, porém, já se achava desperto e sentado sobre as patas de trás, com a cabeça erguida e o olhar curioso e atento a tudo o que acontecia cá fora, fosse um pássaro bicando o chão em busca de sementes, um homem parvo passando, uma folha que caísse, uma nuvem transitória, o rumor das folhas ou apenas a intensa reverberação de algum raio de sol na vidraça da janela.

Fui pôr o motor do carro a trabalhar, como convém a quem quer ir do ponto A ao ponto B sem ter que fazer quase nenhum esforço, mas, algo insensatamente, dei por mim a pensar nos gatos da janela e, pior do que isso, a tentar ver neles como que a imagem ou a metáfora de algo que lhes não pode ser mais alheio: a espécie humana, ou lá que raio é isto de que, homens e mulheres, fazemos vagamente parte. Vi, ou quis ver, no gato acordado e atento o indivíduo empreendedor e vivaz, o que se move e, movendo-se, faz o mundo girar, atribuindo do mesmo passo ao felino que dormia as características intrínsecas de outro género de pessoas, mais concretamente aquelas que esperam que as coisas sucedam por elas mesmas e que sabem que o sol não carece da atenção dos terráqueos na hora de se pôr ou nascer; os sujeitos, enfim, que não vêem nenhum interesse no denodo ou no esforço e que, portanto, correspondem com um desdenhoso encolher de ombros aos entusiasmos sinceros daqueles que, tomando o primeiro raio de sol da manhã, percebem nisso uma bênção quotidianamente repetida e, nem por isso, menos espantosa ou digna de celebração.

Estava, pois, contemplando os dois gatos na janela - ou já nem isso, elucubrando apenas a partir da primeira imagem que deles tive e meditando sobre em qual dos gatos me seria mais conveniente rever-me, se no que já estava desperto, atento e empreendedor, se no que repousava ainda e não queria saber de afã ou excitação nenhuns, posto que a ração deles de cada dia haveria de estar regularmente posta para um e outro indiferentemente da hora de despertar ou da excitação que demonstrassem - quando, levantando outra vez os olhos para o parapeito em que eles estavam, notei que o gato vivaz tinha voltado, também ele, a enroscar-se ao sol e que, muito provavelmente, dormitava já tanto como o outro, sonhando, talvez, com bichanas de pêlo negro e olho azul, ou com insinuantes felinas angorá, e esforçando-se, isso sim, para que o barulho da porta do prédio não voltasse a arrebatá-lo ao perfeito mundo dos sonhos, aonde não há crises nem austeridade, nem mercado cambial ou agências de rating ensandecendo a república.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 30 de Agosto de 2011