sábado, 23 de julho de 2011

Os olhos de Lucian Freud



Quando inaugurei o Teatro Anatómico, o primeiro cabeçalho que aqui tive era apenas isto: os olhos de Lucian Freud. Não sei porquê. Talvez tenha visto nos olhos dele uma nudez e um desamparo tão absolutos que, de algum modo, me pareceu que o pintor ali estava tão exposto como o corpo de um cadáver sendo dissecado por alunos de Medicina.

Ocorreu-me, entretanto, que já tinha escrito sobre esses olhos no conto Zero à Esquerda:

"Eu mesmo, durante certo período da minha vida, ganhei o hábito de contemplar quase diariamente um auto-retrato do pintor Lucien Freud, Reflection. No início, o meu interesse pelo quadro era puramente estético. Atraíam-me sobretudo os olhos de Freud tal como Freud os pintou, parecendo condensar e cristalizar neles uma mágoa e uma melancolia talvez excessivas, mas que me agradavam de uma forma estranha, como se também nesses olhos eu pudesse ver o reflexo de um pedaço obscuro que tenho dentro. Há neles, nos olhos de Freud, fragilidade e força, dor e desistência a um só tempo, mas também sensibilidade e rudeza. No limite, os olhos de Reflection podiam ser também os olhos de Ciclón Molina, o pugilista do conto Segundo Viaje, de Julio Cortázar – esse quase campeão do mundo atormentado por não conseguir recordar o que lhe sucedia entre o início e o fim dos combates, e que morre após a disputa do título mundial, chupado como se lhe tivessem retirado todo o sangue ou como se tivesse querido sair de si mesmo. Mais tarde, porém, o meu interesse estético por Reflection deu lugar a uma certa inquietação existencial (para não dizer que se tratava simplesmente de uma confusão à beira da demência) e fui-me convencendo de que me estava a parecer cada vez mais com Lucien Freud tal como ele é no auto-retrato e que, sobretudo, o meu olhar se assemelhava ao duro, melancólico e profundo olhar de Reflection, como se, ao olhar os olhos de Freud, estivesse a contemplar-me num espelho. Creio mesmo que passei a ver o mundo pelos olhos do pintor inglês nascido em Berlim, tal a osmose que entre mim e o quadro se engendrou."