quinta-feira, 9 de junho de 2011

Franklin vai estudar*



Aconteceu, creio, há onze anos, num hotel de Santa Maria da Feira. No final de uma entrevista com Walter Salles, na qual o filme Central do Brasil (1998) veio naturalmente à baila, perguntei ao realizador brasileiro se tinha visto O Verão de Kikujiro, de Takeshi Kitano (1999). Salles pareceu-me um pouco constrangido quando respondeu: “São parecidos, né?”.

Eu vira O Verão de Kikujiro pouco tempo antes, num festival dedicado aos cruzamentos entre o cinema e a literatura, e notara as coincidências que há entre a história de Central do Brasil, protagonizada por Fernanda Montenegro, e aquela outra a que o próprio Kitano dá corpo e que é, afinal, tão radicalmente diferente do cinema mais habitual do realizador e actor japonês, cheio de gangsters e tiros à queima-roupa. Em ambos os filmes há uma criança perdida à procura de familiares distantes, e um adulto transformado em cúmplice involuntário dessa busca. Em ambos o convívio entre a criança e o adulto acaba transformado numa relação emotiva e intensa. São dois belos objectos cinematográficos e é provável que Takeshi Kitano e Walter Salles se tenham surpreendido, depois, com as semelhanças que entre eles existem, sem que em algum momento, enquanto trabalhavam nesses projectos, um no Japão, o outro no Brasil, tivessem podido imaginar que havia uma história parecida sendo cogitada do outro lado do mundo.

Lembrei-me dos filmes e Salles e de Kitano por causa da incrível história de Franklin Villca Huanaco, um catraio boliviano de dez anos. Fugiu de casa, em Oruro, onde um irmão mais velho o maltratava frequentemente, e escondeu-se escondeu-se num camião, dentro de uma caixa metálica, esperando chegar a Cochabamba, onde a mãe, Zenobia Huanaco, cumpria pena de prisão. Acabou, porém, por viajar mil quilómetros, sem comida e sem água, até Alto Hospicio, no Norte do Chile, onde foi encontrado a vaguear por uma mulher que ficou com a sua guarda temporária.

Na semana passada(*), após várias diligências das autoridades bolivianas e chilenas, Franklin pôde, enfim, abraçar a mãe – uma daquelas sólidas mulheres andinas, parda e de feições indígenas, com tranças negras, um lenço colorido pelas costas e um chapéu na cabeça, que parecem pertencer a um outro tempo e a um outro mundo. E, no entanto, Zenobia Huanaco foi afastada dos quatro filhos por ter sido condenada a três anos de prisão na penitenciária de Cachabamba, depois de ter sido detida na posse de produtos químicos usados no processamento da cocaína.

Quando Franklin fugiu de casa, Zenobia tinha já sido libertada e estava a trabalhar no campo, em regime aberto, à espera da conclusão da pena. Quando pôde, enfim, abraçar o filho, prometeu, comovida, olhar por ele e “pô-lo a estudar”. Espera, muito provavelmente, que Franklin consiga, deste modo, libertar-se da pobreza indigente que leva alguns camponeses bolivianos a traficar produtos químicos. Ainda que também na Bolívia possa estar para chegar o dia em que estudar não garanta coisa alguma, também ali não custa quase nada sonhar com finais felizes.


*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 24 de Maio de 2011