quinta-feira, 5 de maio de 2011

O bom português* (ainda mais actual)


O boletim meteorológico anunciava chuva, raios e coriscos que eu sei lá, e o rádio-despertador sacudiu-me da cama com as más notícias do costume – as medidas de austeridade que nunca atingem aqueles que as anunciam, a negociata dos submarinos, a xenofobia e a extraordinária inveja dos verdadeiros finlandeses, zangados por não terem calor nem raparigas bronzeadas, e, ainda por cima, serem obrigados a pagar a nossa crise. Não sendo, porém, pessoa para me deixar abater por tão pouco, escanhoei a cara e saí festivamente para a rua, disposto a aproveitar os últimos raios de sol antes da borrasca, o chilrear dos passarinhos e a competência geral da nação. Trouxe, evidentemente, os sapatões amarelos, o velho chapéu de coco com uma florzinha, a gravata verde-alface e o narigão vermelho. Cabendo-me ser um bom e verdadeiro português, convém-me muitíssimo trajar a preceito.

(Tenho a impressão de ter ouvido alguém chamar-me palhaço, mas não tive tempo de levar a mão ao chapéu para agradecer o simpático reconhecimento do meu esforço, pois logo outro transeunte me lançou à cara um esguicho de água disparado por uma espécie de bisnaga escondida na lapela. Que pilhéria tremenda!)

Dá gosto estar vivo só para poder circular nas nossas ruas e constatar que a vida é uma festa. Mesmo a dívida pública e privada, se bem entendo as coisas, há-de ser uma invenção de algum mentiroso ressabiado, pois tenho a felicidade de não ter conhecido até hoje um único português incompetente, gastador ou que seja minimamente responsável pela situação em que agora dizem que estamos. Recordo-me bem, aliás, dos discursos nas noites das eleições, e sei perfeitamente que nós, os bons e verdadeiros portugueses, somos sempre bestialmente sábios e ponderados na hora de escolher os nossos representantes, e que estes são sempre visionários, grandes estadistas e excelentes gestores. O mesmo se passa, de resto, com a economia da nação, servida dos melhores empresários, dos banqueiros mais beneméritos, das mais competentes chefias intermédias e de uma mão-de-obra laboriosa e bem paga – radiante.

Que país bem-aventurado! Medito nisto enquanto coço pensativamente o meu nariz vermelho – e não posso senão concordar com aquilo que o Paulo Varela Gomes aqui escrevia no sábado; que devemos aproveitar a crise europeia para atrair ao nosso país os turistas que, agora mais austeros, não possam já ir refastelar-se nas praias de Bali ou sacudir mosquitos na Índia. Que venham, pois, os europeus. Que venham carradas de alemães e finlandeses, de suecos e holandeses, de camones de todos os credos e cores, e que vejam, de uma vez por todas, que é mentira que este seja um país de preguiçosos e incompetentes, de inúteis gastadores. Que venham e constatem como demos bom uso ao dinheiro que para cá mandaram, destrocando-o por carros de luxo, auto-estradas a perder de vista, centros comerciais à farta e belas imitações de Miami Beach. E que aprendam, enfim, como é fácil ser feliz com ordenados de trezentos euros.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 19 de Abril de 2011