segunda-feira, 28 de março de 2011

Outra vida*



Estando de folga, passei a manhã de sexta-feira a limpar o pó, a aspirar e a esfregar azulejos, pelo que só à hora de almoço desse dia fiquei a par daquilo que tinha acontecido no Japão. Soube do impressionante safanão produzido pelas entranhas da Terra revolvendo-se e vi as imagens aéreas do tsunami avançando imparável sobre o litoral, arrastando tudo, casas e carros, barcos e pessoas.

Pude, creio que pela primeira vez, ter uma vaga ideia de como será estar diante da onda gigante, vendo-a aproximar-se e destruir tudo. Fui capaz de me imaginar lá em baixo, esbracejando para tentar manter-me à tona no meio do turbilhão, porque Clint Eastwood o mostrou no cinema, numa das cenas iniciais de Hereafter-Outra Vida. Ainda que a realidade tenha sido simulada de modo imperfeito pelo filme, o tsunami perdeu aí a condição de acontecimento destruidor mas relativamente distante, filmado ao longe, e passou a ser uma coisa que afoga e sufoca, um pesadelo do qual, às vezes, algumas pessoas se salvam – como Marie Lelay, a ficcional jornalista francesa de Hereafter, ou o sexagenário japonês que foi encontrado no domingo, em alto mar, em cima do que restava de um telhado à deriva.

De acordo com uma notícia do canal japonês NHK, Hiromitsu Shinkawa tinha sido evacuado da cidade de Minami Soma, na região de Fukushima, mas voltou atrás para tentar recolher alguns bens pessoais. Foi aí que a onda do tsunami o apanhou, arrastando-o juntamente com a casa. Deve, então, ter sentido o pavor do abismo líquido e da morte quase certa, afogando-se e debatendo-se para se agarrar à vida. Depois, quando o mar recuou, Hiromitsu conseguiu trepar para cima dos restos flutuantes de um telhado, e ali ficou 45 horas, até que um navio da Marinha japonesa o encontrou a quinze quilómetros da cidade de Futaba, acenando e provavelmente feliz por ainda estar vivo e sem ferimentos graves; por estar a viver uma outra vida sem ter realmente perdido a que tinha antes, apesar da esposa desaparecida e da casa apagada do mapa pela hiperbólica força das águas.

A incrível história de Hiromitsu Shinkawa deu a volta ao mundo num ai e, ontem de manhã, o Google já registava 72 mil ligações para notícias com o seu nome. Há quem lhe chame “o homem mais sortudo do mundo”. As fotografias mostram-no com um braço erguido e um capacete branco na cabeça, sentado sobre um monte de destroços flutuando num mar ironicamente manso; e, depois, já a bordo do pequeno barco que o resgatou, enrolado num cobertor amarelo e segurando uma lata de refrigerante.

Não consigo imaginar o que ia na cabeça do senhor Shinkawa no momento em que o bote era erguido para o destroyer da Marinha japonesa. Mas ocorre-me que, na sexta-feira, enquanto ele tentava manter-se vivo, eu estava em casa, no exercício pleno da minha outra vida, limpando domesticamente o pó e esfregando azulejos. É um trabalho que, às vezes, me aborrece e irrita. Naquele dia, porém, estando longe do pesadelo japonês, eu era, sem que sequer o soubesse, o verdadeiro gajo com sorte.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 15 de Março de 2011