segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Louco de palestra*



Tanto quanto é possível determinar, a expressão “louco de palestra” terá sido escrita pela primeira vez num texto do escritor brasileiro André Czarnobai para a revista Piauí, há coisa de um ano. Serve para denominar aqueles indivíduos que, em qualquer conferência, debate ou mesa redonda, aproveitam o momento destinado à participação do público para se erguerem das respectivas cadeiras e falarem durante alguns (longos) minutos sobre assuntos raramente relacionados com a matéria em análise. Os loucos de palestra começam quase sempre por declarar que querem “só dizer uma coisa” e acabam por tecer várias considerações avulsas, por fazer perguntas completamente estapafúrdias e até por declamar poemas originais (e injustamente incompreendidos).

No Brasil, pelos vistos, a expressão caiu imediatamente no goto dos habituais participantes em conferências. Já foram escritos longos artigos sobre o assunto, elencando os vários géneros de loucos de palestra e enumerando casos concretos de oradores tão espontâneos como inesquecíveis, bem como algumas das mais fleumáticas réplicas dos interpelados. Em Portugal, porém, a expressão ainda não foi devidamente adoptada, embora também não me ocorra nenhum equivalente luso suficientemente generalizado. Ainda assim, qualquer pessoa que já tenha participado numa sessão pública conhece pelo menos a sua boa meia dúzia de loucos de palestra.

Fiquei, aliás, a par da existência da expressão brasileira graças a uma professora galega de Português, a qual, tendo assistido, na Póvoa de Varzim, à apresentação de um livro na qual fui um dos oradores, pôde testemunhar a performance de um dos mais notáveis loucos de palestra que já conheci. O homem sentou-se na última fila, discretamente, mas, assim que teve ocasião, explicou que entrara ali por acaso, ficando horrorizado com o carácter ímpio de um romance que nem sequer lera – O Novíssimo Testamento, do cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa, obra notável e muito divertida, que inventa um Jesus ressuscitado fêmea na ilha de Santiago.

Beato e mal disposto, o homem não queria saber do livro para nada e empenhou-se apenas em advertir os presentes dos riscos que existem quando se brinca com coisas supostamente sérias, como deus e assim. Proferiu frases memoráveis, que o Mário Lúcio encaixou com uma paciência maior do que a de Job, mas eu apreciei particularmente a ameaça velada com que terminou a intervenção. Num tom pausado e grave, com o dedo um pouco espetado, avisou os presentes de que a galhofa vai acabar mal. “E mais cedo do que se pensa”, acrescentou após uma pausa espantosa, dando a entender que dispõe de informação privilegiada sobre o juízo final e outros desígnios divinos.

Penso, às vezes, nestes indivíduos e na capacidade que têm para agirem ao arrepio do mais elementar bom senso, proferindo sentenças graves contra toda a razoabilidade, sempre muito seguros de si. Penso neles e pergunto-me se escrever crónicas não será também uma forma de ser louco de palestra.

*Crónica publicada no P2 do Público, no dia 28 de Dezembro de 2010