segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A literatura explica

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 7 de Dezembro de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



Aproveitei uma deslocação de trabalho à Galiza e já comprei (e li) Lo que sé de los hombrecillos, o mais recente romance de Juan José Millás. O livro justificou amplamente o entusiasmo antecipado que aqui manifestei, mas isso nem sequer vem agora ao caso. Não sendo crítico literário, a minha leitura é essencialmente recreativa, ainda que tenha outra vez constatado como, de certa forma, a realidade e a literatura tendem a confundir-se, nem que seja na minha transtornada cabeça.

Quis o acaso que estivesse a ler a página 144 do livro na mesma altura em que a habitual maioria parlamentar da Assembleia da República (PS, PSD, CDS) chumbava uma proposta do PCP para que os dividendos das acções fossem taxados já este ano a 29 por cento. A medida destinava-se a impedir que algumas empresas prejudicassem o Estado e os contribuintes comuns em várias centenas de milhões de euros, antecipando para 2010 a distribuição de lucros para beneficiar de um regime fiscal mais favorável. A maioria dos deputados, porém, decidiu autorizar esta modalidade de batota e fuga ao fisco, argumentando que o Estado, ao contrário das empresas, não pode mudar as regras a meio do jogo.

Os impostos que aquelas empresas e os seus accionistas não vão pagar serão, evidentemente, pagos por alguém: os contribuintes do costume, aqueles que não podem enganar o Estado. A explicação para este persistente fenómeno das finanças portuguesas está na tal página 144 do livro de Millás, cujo narrador é um professor jubilado de Economia.

O economista do romance, explique-se, descobre que a sua casa é visitada por uma colónia de homenzinhos, ágeis como lagartixas. Um deles é uma réplica exacta do narrador, fabricada a partir de tecidos seus, desenvolvendo-se uma relação simultaneamente simbiótica e parasitária entre os dois. Partilham sensações e concedem-se novas experiências só possíveis nos respectivos mundos (o pequeno e o grande). A dado passo do enredo, o homenzinho exige desfrutar da sensação de matar outra pessoa e o professor sai para a rua disposto a escolher uma vítima. Decide-se por um velho coxo e miserável e, logo a seguir, percebe como também naquela situação a economia explica a realidade. “Aquele velho ia morrer por ser pobre. Por ser coxo também, mas sobretudo por ser pobre. Perguntei-me por que não fui procurar uma vítima num bairro rico (...) e não tive mais remédio senão dar-me uma resposta de carácter económico”.

Algo muito semelhante acontece na Assembleia da República sempre que é preciso decidir quem há-de ser sacrificado a bem das finanças públicas. Obedecendo a uma lógica muito peculiar, os senhores deputados escolhem invariavelmente penalizar os mesmos de sempre, não sei se por serem pobres ou apenas por não serem capazes de se defenderem, por exemplo distribuindo cargos em conselhos de administração. Em última análise, a justificação é sempre económica, tendendo as decisões da maioria a favorecer o pecúlio próprio e as economias de quem já é rico.