segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O esquecimento

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 3 de Agosto de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)



Quando o escritor colombiano Héctor Abad Faciolince se aproximou do pai, morto às mãos dos paramilitares do seu país, descobriu-lhe no bolso das calças um poema desconhecido, atribuído a Jorge Luís Borges, cujo primeiro verso acabou por servir de título ao livro Somos o esquecimento que seremos. Não creio que possa esquecer-me do notável romance de Faciolince e do exemplo do seu pai (mais depressa, creio, deixarei de me lembrar da aguardente que bebi com o Héctor na Póvoa de Varzim). Contudo, querendo ou não, por muito que esperneemos e queiramos fazer-nos notados, somos quase todos, mais cedo ou mais tarde, matéria para o esquecimento futuro.

Lembrei-me do livro de Héctor Abad Faciolince por causa de uma outra história e de um outro escritor, o italiano Carlo Cristiano Delforno, falecido em 1995, com 52 anos. Publicou, nos anos 1980, cinco romances de algum sucesso, ganhou um importante prémio literário e os críticos chegaram a considerá-lo um dos escritores mais originais e inovadores da ficção italiana, uma grande promessa e, provavelmente, todos os demais lugares-comuns que costumam dedicar-se aos romancistas em início de carreira.

Casado com uma mulher franco-norueguesa e pai de dois filhos, Delforno foi viver para Los Angeles, onde se dedicou a escrever para a indústria cinematográfica e a ganhar muito dinheiro. De acordo com o escritor colombiano Santiago Gamboa, Carlo Cristiano Delforno conheceu o sucesso e, logo após, o álcool, o excesso e as belas mulheres que sempre parecem farejar a vertigem do êxito. Farta dessa vida, a esposa do escritor abandonou-o e levou os filhos. Delforno passou por uma fase depressiva e acabou por voltar a Itália para tentar recuperar a família. Comprou um terreno e construiu uma grande casa voltada para um vale semeado de oliveiras e carvalhos. Acabou por morrer ali, sozinho e, parece, destruído pela bebida.

Santiago Gamboa contou a história de Delforno num número mais ou menos recente do suplemento literário Babelia, do El País. Descobriu-a porque alugou aquela mesma casa e começou a perguntar a quem pudesse ter conhecido e lembrar-se de Delforno. Conseguiu reconstituir alguma coisa e até chegou a ler um dos romances do italiano, Transição – o caso de um homem que perde tudo. Se era uma ficção premonitória, dificilmente Carlo Cristiano Delforno terá adivinhado que a sua própria queda pudesse sobrevir tão depressa e tão tragicamente. Em menos de vinte anos, os seus livros desapareceram dos catálogos das editoras, ninguém o cita ou recorda e não aparece em nenhuma história da literatura italiana. Apagou-se e alcançou, talvez involuntariamente, o olvido a que alguns escritores aspiram, transformando-se, por isso, em eremitas agressivos e amargos – como J.D. Salinger, para citar só um exemplo. Trata-se evidentemente de uma perda de tempo. “A história de Delforno – escreveu Gamboa – é, no fim, a de todos os escritores: alcançar o esquecimento que, mais cedo ou mais tarde, todos merecemos”.