segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O Cadillac dourado

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 27 de Julho de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)




A revista Sábado contava há dias que o antigo piloto de Fórmula 1 Eddie Ervine decidiu viver numa casa de madeira (sem televisão!) de uma ilha das Caraíbas. Perguntava-se a publicação, algo céptica, quanto tempo resistirá Eddie a tamanha privação. Há-de ser, de facto, um sacrifício enorme ter que viver numa ilha paradisíaca, pescando e vendo o tempo passar diante da praia de areia branca e do mar verde-esmeralda, privado até de um frigorífico para refrescar as cervejas. Como é que Eddie Ervine aguentará? Será possível viver sem as filas de trânsito, sem os discursos dos políticos na televisão, o mau feitio dos vizinhos, as telenovelas, os angariadores da Meo e o apocalíptico trombetear da crise? Como?

Confesso que também eu fiquei um pouco inquieto com os tristes dias que esperam Eddie Ervine na soturna ilha das Caraíbas. Só não me interessei mais solidariamente por este problema, oferecendo-me para fazer alguma companhia ao bom homem, porque, nesse mesmo dia, fui forçado a reorientar toda a filantropia que me corre nas veias para os indigentes empresários portugueses, impossibilitados (parece) de cumprirem o acordo social que prevê que o ordenado mínimo chegue aos 500 euros no próximo ano. Percebo perfeitamente o drama e o horror que ameaça estes homens e mulheres. São eles, afinal, quem impulsiona o desenvolvimento do país e provê a geral prosperidade das massas, vendo-se, porém, forçados por entidades maléficas e conspirativas a pagar autênticas fortunas aos mandriões dos trabalhadores, os quais, calhando, vão gastar esse dinheiro mal gasto, em comida, roupa, medicamentos ou assim.

Sacanas! Torna-se óbvio que os invejosos se mancomunaram para prejudicar os empresários e industriais portugueses, provavelmente com o pérfido fito de causar dano à prosperidade da indústria automóvel, nomeadamente ao segmento das viaturas de luxo, o qual tinha heroicamente escapado à crise e à depauperação geral, demonstrando um vigor extraordinário e que deve ser respeitado e protegido, a menos que se queira destruir uma das poucas coisas que funciona decentemente no país. Malvados!

Estava eu entregue a esta grave reflexão, ponderando mesmo colocar em marcha um peditório destinado a obter fundos para auxiliar o pobre empresariado nacional, quando pus os olhos num caso de polícia narrado no Diário de Notícias: tinha sido detido um homem responsável por vários roubos na região do Alto Minho. O indivíduo, segundo a notícia, assaltara várias pessoas e postos de abastecimento de combustíveis, conduzindo sempre um discretíssimo Cadillac dourado de matrícula espanhola. Perante estes factos, a polícia ponderou e concluiu, ao fim de algum tempo, que um Cadillac dourado de matrícula espanhola não é uma coisa assim tão habitual de encontrar e lá acabou por deitar a mão ao meliante.

Lendo esta notícia, pareceu-me que alguém roubando outras pessoas ao volante de um Cadillac dourado constitui uma bela caricatura do país que temos. Mas deve ser impressão minha.