segunda-feira, 24 de maio de 2010

Ser ou não ser 12h30

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 4 de Maio de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)




São 12h30 e ainda não comecei a escrever a crónica que, normalmente, está quase pronta a esta hora. Ponderei, aliás, esperar que fossem exactamente 12h30 para escrever aquela frase, de modo a que fosse um bocadinho mais verdadeira, mas decidi antecipar-me um pouco. É indiferente. Podem até ser já quatro da tarde e eu não passar de um grande mentiroso – como dizem que foi Paul Gauguin, o pintor francês.


De acordo com especialistas citados pelo jornal The Guardian, as famosas cenas taitianas pintadas por Gauguin, com langorosas raparigas seminuas, de tez morena, serão apenas uma falsificação da realidade. Na década de 1890, já devidamente evangelizadas por missionários europeus, as ilhas da Polinésia seriam bastante diferentes daquilo que Gauguin pintou. As mulheres usavam batas e iam à missa ao domingo. Se posavam nuas para Gauguin, ajudando-o a encenar essa espécie de éden naturalista, faziam-no subjugadas, critica Belinda Thompson, a curadora de uma grande exposição que o museu Tate Modern dedicará ao pintor.


Mas se o quotidiano taitiano no final do século XIX não correspondia à bela mentira criada por Paul Gauguin – sendo até, pelos vistos, bem menos interessante –, tendo a considerar que o defeito está na realidade e não na obra do pintor. Se a vida se abastarda, se se torna aborrecida e previsível, reinvente-se a vida.


Foi o que fizeram há dias, em Porto Rico, os familiares de David Morales Colón, um estafeta de 22 anos assassinado numa rixa de delinquentes. David adorava a sua moto, uma Honda CBR 600F4i, e, por isso, a funerária que tratou do enterro foi instada a embalsamar o motoqueiro, para que pudesse ser velado sentado na potente máquina. As imagens mostram-no inclinado sobre o depósito, o corpo tenso e o olhar posto na imaginária estrada, como se conduzisse a 200 km/h e tivesse pressa para se afastar do mundo e da realidade.


Ao contrário, o escritor catalão Enrique Vila-Matas conta, no Diário Volúvel, que foi a La Baule, na costa atlântica francesa, sobretudo para poder anotar uma frase que, para ser verdadeira, exigia essa deslocação. “A frase? É simples e autêntica: «Vim a La Baule para poder escrever que estou em La Baule»”. Se fosse Gauguin ou um motoqueiro porto-riquenho, Vilas-Matas poderia contornar a viagem e inventar na sua varanda uma La Baule falsa, mas eventualmente mais interessante, parecida com Barcelona e com vista para o Mediterrâneo (e onde, ainda por cima, residiria o escritor Enrique Vila-Matas, vantagem de que a verdadeira La Baule não se pode gabar).


E se Vila-Matas nunca tiver posto os pés em La Baule? E se tiver anotado aquela frase exactamente nas mesmas circunstâncias em que eu escrevi que eram 12h30? Fará muita diferença? Provavelmente nenhuma. São agora, em todo o caso, 12h27, e como tenho, enquanto jornalista, um certo compromisso com a realidade, esperarei o tempo necessário para escrever que são 12h30 sem que possam desmentir-me. São 12h30 e, como de costume, tenho a crónica quase pronta.