segunda-feira, 12 de abril de 2010

Sierva María

(Crónica publicada no P2 do Público, no dia 9 de Março de 2010. Amanhã, como todas as terças-feiras, há mais)




A memória é um saco furado cheio de areia fina. Tenta-se carregá-lo às costas, um ano após outro, mas, quando se vai pelo que lá estava dentro, descobre-se que o saco se esvaziou e só guardou a ténue poeira que a areia deixou – apenas um resíduo mínimo de tudo quanto julgávamos ter guardado. Fui, hoje, procurar Sierva María de Todos los Ángeles, mas apenas encontrei a sua ossada diminuta e dispersa, o esqueleto de uma criança que deve ter sido extraordinariamente bela (ou assim a imagino).

Explico-me.

Del amor y otros demonios, o filme realizado pela costa-riquenha Hilda Hidalgo a partir do romance homónimo de Gabriel García Márquez, foi exibido na semana passada no Festival Internacional de Cinema de Cartagena das Índias, na Colômbia, e, por causa da notícia da estreia, dei por mim a pensar que devo regressar o quanto antes aos livros de Gabo e que é idiota perder tempo lendo ninharias quando se pode, simplesmente, ler e reler Gabriel García Márquez. Devo ter lido Do Amor e Outros Demónios há vinte anos, mais ou menos, e depois esqueci-o quase completamente. Um crime.

De acordo com a sinopse do filme, Del amor y otros demonios narra a história de uma menina de 13 anos, Sierva María, que viveu em Cartagena das Índias durante a época colonial. Filha de marqueses, foi, porém, criada por escravos negros e manifestava a poética intenção de conhecer o sabor dos beijos. Mordida por um cão raivoso numa época em que a raiva era confundida com uma possessão demoníaca, acabou por ser internada num convento para ser exorcizada. Aí morreu. E foi aí que Gabriel García Márquez a descobriu no dia 26 de Outubro de 1949, durante a operação de exumação das criptas funerárias do antigo Convento de Santa Clara.

Como uma biblioteca decente é ainda mais difícil de carregar às costas do que um saco de areia que se vai esvaziando, não tenho comigo o romance de García Márquez para me ajudar a recordar o enredo de que não me lembro. Recorro, porém, à internet e encontro o PDF da oitava edição do romance na Editorial Sudamericana de Buenos Aires. Aí leio a epígrafe de Tomás de Aquino segundo a qual “os cabelos hão-de ressuscitar menos que as outras partes do corpo” – e começo a recordar.

Não me ocorre, porém, o enredo. Vívida como se a tivesse lido ontem, assalta-me, isso sim, a descrição do esqueleto de uma criança morta e da sua enorme cabeleira viva, “de uma intensa cor de cobre”, com vinte e dois metros e onze centímetros de comprimento. Percebo, então, que nunca a esqueci, que não cheguei a perder a imagem dessa “esplêndida” cabeleira agarrada ao crânio de uma menina morta, tal como García Márquez a descreve no prefácio do livro. Aí conta como, sendo jornalista num dia sem grandes notícias, foi mandado ver se a exumação das criptas de Santa Clara revelava alguma história que valesse a pena. E acomete-me uma estranha (e dupla) nostalgia: do tempo em que lia os livros de Gabo e em que acreditava que ser jornalista seria tão simples como encontrar histórias para contar.