sexta-feira, 9 de abril de 2010

Memórias

(crónica da coluna "Crioulizado" desta quinzena para o jornal A Nação, de Cabo Verde)

Já o escrevi uma vez e repito: poucas vezes me senti tão livre como num pedaço de tarde que passei na Praia Grande de S. Vicente. Bastou-me, para tanto, ir a correr (literalmente) até à ponta do areal mais distante do sítio onde os banhistas se deixavam ficar (não sei como é agora, com a nova estrada que vai até à Baía das Gatas). Ali chegado, e aproveitando a camuflagem da marulhada que as ondas fazem quando se enrolam e viram espuma, gritei alto como nunca tinha gritado, a plenos pulmões, como costuma dizer-se; berrei de um modo completo e libertador, uma, duas, três vezes, até me sentir aliviado e limpo.

Penso nisto e creio que tinha estado remordendo aqueles gritos há não sei quantos anos, talvez desde sempre, falando baixo, calando quando devia dizer, recalcando sentimentos maus e obrigando-me àquele silêncio que se cultiva para evitar chatices maiores. Berrei, pois, e tê-lo feito ali, na ponta da Praia Grande, atou ainda mais apertadamente o inexplicável laço que me liga a Cabo Verde.

Há instantes assim, que nos tocam e comovem, que se gravam fundo na tábua cheia de lanhos, incisões e garatujas que vamos sendo desde que nos apresentamos ao mundo e ele começa a escrever-nos. Outro exemplo: eu já tinha imaginado a ilha de Santo Antão antes de lá ter ido, o que só aconteceu alguns dias depois dos berros na Praia Grande. Transformei a ilha em cenário literário de um conto que escrevi e, para tal, vi fotografias que encontrei na internet, alguma coisa, enfim, que me ajudasse a compor uma ilha imaginária mas minimamente assemelhada à ilha concreta e real que tinha lido num romance de Onésimo Silveira. Quando, por fim, cheguei a Santo Antão, não estava ainda preparado para o que encontrei, para tamanho delírio da geografia, tanta vertigem.

Na Ponta do Sol, diante do pequeno porto de barcos coloridos, fiz mesmo questão de sair da Hiace para pisar e fotografar o sítio exacto onde a peculiar personagem do meu conto passava os seus inventados dias. A viagem tinha que prosseguir tão depressa quanto possível, pois era ainda necessário regressar a Porto Novo a tempo de apanhar o último barco do dia para o Mindelo, mas, nos breves instantes que ali estive, senti como que um leve estremeção interior – exactamente como num simbólico e impossível regresso a casa.